ENSAIO
EDUARDO LOURENÇO

Pessoa entre os seus

A monumental edição de Patrick Quillier é um monumento
privilegiado da nossa presença cultural no mundo

in VISÃO
( de 27 de Dezembro de 2001)

 

Setenta e cinco anos após a sua morte, Fernando Pessoa entra na Plêiade. Assenta-lhe bem este destino estrelar. Sonhador de absolutos plurais, talvez não estranhe esta nova configuração da sua vida póstuma. Deve diverti-lo esta espécie de Nobel celeste que não teve. Grande ironista e falso indiferente para quem tudo era ao mesmo tempo óbvio e misterioso, apreciará, como se fosse de um outro, esta segunda vida na companhia dos seus pares. Todos os Shakespeare, Milton, Goethe, Mallarmé, que, jovem ainda, lhe serviram de referência, de consolação e escada para os seus próprios sonhos.

Foi a sua, como raras, criação em segundo grau, criação-descriação de tudo sob fundo de nada. A única realidade que tomou a sério foi a do Sonho - ele mesmo uma figura dele - não como reverso da realidade ou da compensação para a sua ausência mas como quinta-essência da vida. No passado próximo, a sua linhagem foi a do simbolismo, cântico da Noite como "substância de todas as coisas", mas essa mesma a viveu nos mais belos dos seus poemas como absoluta virtualidade, mistura indiscernível do real e do irreal. Só hoje esse território indiscritível, à espera do seu futuro, começa a ser "real como a lua da Ode à Noite". Nele entramos, descrentes de tudo quanto desde Homero tomávamos pela Natureza, pela Sociedade e pela História e se converteu, à nossa vista, em mera ficção. Mesmo a morte e o sofrimento mudaram da realidade e se tornaram irreais como as nossas guerras de mortos fictícios e vencedores sem combate. Não será por acaso que Pessoa ascende agora à constelação virtual que imaginou para fugir a uma realidade que não estava à altura dos seus sonhos em busca de um céu inexistente.

Quando há anos, em Paris, se representou o irrepresentável Fausto, aquela cidade "pensante" sentiu-se afogada naquele inédito "maëlstrom" de visões contraditórias, de pensamentos plausíveis, de enigmas convertidos em mistérios e de mistérios convertidos num só mistério. Foi uma sideração e assim ficou lembrado. Tornou-se necessário que o Livro do Desassossego o aproximasse do leitor comum para que Pessoa, de súbito, se convertesse num dos ícones culturais de um século que, só agora, começa a viver como suas as questões sem resposta do Fausto. A publicação da sua Obra Poética na Plêiade não se destina a resolver o

enigma de que nasceu essa inversão de signos entre a Realidade e a Irrealidade a favor da segunda, mas confere-lhe um estatuto clássico e torna o convívio com esse enigma menos corrupto, na impossibilidade de o tornar familiar.

Precedida de um prefácio de Robert Bréchon, pessoano da primeira hora, a quem se deve a mais cuidada e exaustiva biografia do Poeta em língua francesa, a monumental edição de Patrick Quillier, poeta e crítico de rara subtileza, é não apenas um marco na bibliografia de Pessoa, mas um momento privilegiado da nossa presença cultural no mundo. Duas conhecidas edições de Pessoa já haviam familiarizado a sua Obra com o meio francês - mas esta nova edição, fiel no essencial, à versão da edição Bourgois, comentada com precisão e originalidade por Patrick Quillier, integra em si o próprio mito da célebre Biblioteca da Plêiade. É um novo ícone literário. Em si e para nós, à espera que a companhia de Camões que o precedeu na História, no génio e na fauna, convertam numa só a navegação da nossa alma. Terminará, então, de vez - já terminou - o nosso velho exercício caseiro de nos supormos marginalizados em matéria de existência cultural e das suas miragens. Saudando, como convinha, o acontecimento, Eduardo Prado Coelho que tanto tem feito para nos tornar visíveis, e, sobretudo, dignos de ser vistos, já disse sobre isso o que deveria ser dito. Mas não é demais prolongar os ecos do seu comentário à edição histórica da Plêiade.

Beneficiando de todas as tentativas para "organizar" o que o seu novo editor clama, o "capharnaum" textual de Pessoa, a publicação da Plêiade é o que mais se aproxima de uma edição crítica, ainda em curso entre nós. Mas é duvidoso que alguma vez possamos gozar em relação ao poeta da Ode Marítima dessa espécie de paz erudita que se liga à ideia de edição crítica. A Obra de Pessoa não é apenas materialmente caótica é intrinsecamente descentrada, viagem no interior do caos em que nos tornámos. E, assim, e nessa impossibilidade de se fechar sobre si mesma, porque sem "centro" em torno ao qual se possa dispor, reside acaso não só o seu fascínio interminável como o seu carácter profético. Foi escrita para um mundo onde o Verbo integraria a sua sombra original. Verbo estilhaçado por não haver Deus algum para reconstituir os pedaços a mais que há na taça da Realidade. É o mundo em que estamos e Pessoa o dono dele. Dono em sonhos, mas há outro senhorio?