No XX Salon du livre de Paris:
DO QUEBEQUE A PORTUGAL


Por
Luís Aguilar

O maior acontecimento cultural europeu aberto ao público, o Salon du livre de Paris, apresentou Portugal na sua máxima força: 70 autores que escrevem na nossa língua, 66 editores, 59 títulos de livros portugueses traduzidos e lançados por editores franceses, encontros, debates, leituras, mesas-redondas, recitais, espectáculos, cinema, música. Uma embaixada portuguesa em força, com Sampaio e Chirac a abrirem formalmente a vigésima edição deste Salon du Livre de Paris, visitado por 234 mil pessoas, record absoluto de visitantes, para o qual muito contribuiu Portugal, o primeiro país-tema europeu a receber estas honras, depois do Japão, em 1997, do Brasil, em 1998, e do Quebeque, em 1999.

Assim, este ano, Portugal foi a vedeta que recebeu o testemunho do Quebeque, país que teve igual destaque no evento do ano passado. Desta passagem de testemunho do Quebeque a Portugal, o prestigiado jornal montrealense Le Devoir, tece considerações aberrantes e faz comparações que nos indignam.

Com uma prosa invejosa, ignorante e arrivista, que acabámos de descrever Le Devoir fala do que não sabe e mal conhece sobre Portugal, que trata pejorativamente, com destaque de primeira página, na sua edição de 17 de Março de 2000, em artigo intitulado De Québec à Lisbonne en passant par le e-Book. Nele, Portugal é visto como un petit pays méconnu. Comme son écrivain phare, Fernando Pess(õ)a (assinale-se o erro) qui écrivit sous 72 pseudonymes, le Portugal cache des écrivains aux personnalités variées. A ignorância tem muita lata.
O jornalista de Le Devoir que escreveu o citado artigo, tem uma visão de Portugal do antes do 25 de Abril de 1974 e da sua integração na União Europeia, visão, infelizmente muito difundida aqui no Quebeque, que vê Portugal como um país isolado, minúsculo, parado no tempo, com um ditador "orgulhosamente só", cujos habitantes têm de imigrar para o Canadá, ilegalmente, para, escondidos, numa qualquer cave de costureirinhas, poderem sobreviver.
Nem Portugal nem o Quebeque são já os mesmos. Os portugueses estão de regresso ao seu país em pleno desenvolvimento e expansão, enquanto o Quebeque vive uma recessão e uma crise económica e de identidade cultural acentuadas. Actualmente, Portugal é o centro das atenções, onde tudo se passa, sobejamente conhecido por todo o mundo civilizado, e preside actualmente à União Europeia. A organização da Expo Universal de 98 em Lisboa, a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago (e não Saramango como escreve o articulista), o renascimento do novo Cinema Português, homenageado recentemente em Turim, a intervenção relevante do Governo Português no processo de emergência de um novo país de língua portuguesa, Timor Lorosae, a descoberta internacional de Fernando Pessoa (e não Pessõa), representado no Quebeque por três companhias teatrais diferentes. Portugal é um país à la mode, que já ninguém pode ignorar.

Milhões de olhos, de ouvidos, de bocas, corpos inteiros vêm, escutam, ouvem, saboreiam e sentem um país que deu novos mundos ao Mundo e que atingiu a maioridade política, democrática, cultural, social e económica, depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, revolução que esteve longe de ser tranquila e que, por isso, não tem comparação com a do Quebeque, como insinua o Le Devoir.
Não estranha, senão aos que não sentem, não ouvem, não vêm, não saboreiam que, por tudo isto, Portugal seja convidado a protagonizar diversos acontecimentos e situações nos mais diversos sectores da vida dos países e das suas gentes. Não espanta, senão aos ignorantes, revanchistas e chauvinistas que Portugal, sem grandes efeitos mediáticos, tenha atraído e conquistado o público do XX Salon du livre de Paris, com particular relevância para o público francês que encheu por completo as salas de debate, onde se encontravam José Saramago, Lobo Antunes, Mia Couto, Mário de Carvalho ou Eduardo Lourenço, deixando por encher outras, onde os autores franceses e quebequenses tudo faziam para atrair o público.
António Lobo Antunes e Lídia Jorge, autores de relevo, em França, pelo número de traduções e de críticas elogiosas, bem como os editores Fernando Guedes e Francisco Lyon de Castro e a livreira Karin de Sousa (Livraria Buchholz), foram consagrados com o grau de cavaleiro das Artes e das Letras, imposto pela ministra da Cultura francesa, Catherine Trautman, na presença do ministro Manuel Maria Carrilho. Maria Velho da Costa, Hélia Correia, José Riço Direitinho, Baptista Bastos, Pedro Rosa Mendes, Possidónio Cachapa e Helder Macedo vão ser editados em França pela primeira vez. Poetas como Herberto Helder, Al Berto ou Sophia de Mello Breyner reforçaram a sua presença, em francês, com antologias.
Perante estes factos concretos, o jornal Le Devoir evidencia, se não de má fé, com clara miopia: Reste qu'à part quelques vedettes, les auteurs portugais sont surtout publiés en français par de très petites maisons d'édition, comme Chandeigne, La Différence et Métaillé.
Por outro lado, é preciso imaginação para comparar, uma vez mais pejorativamente, José Saramago, Eduardo Lourenço e Lobo Antunes que, na opinião do Le Decoir, s'apprêtaient à succéder aux Lalonde, Soucy et Laferrière.
Ainda que saibamos que os quebequenses, arautos do multiculturalismo, tenham uma cultura geográfica, social e histórica débil, caberia aos jornalistas do periódico, talvez menos medíocre que aparece nas bancas do país francófono da América, informar e até fazer uma certa pedagogia. Mas não! Ao tratar assim Portugal, aquele jornal alimenta a ignorância triste de quem desconhece o país de Saramago e de Pessoa, de quem nem os nomes sabe escrever, misturando-os com Espanha, desconhecendo os seus grandes nomes literários, mau grado estarem largamente traduzidos em francês, por pequenas e grandes editoras e entre eles até haver um Nobel, que o Quebeque nunca teve.
E ninguém viu, na vigésima edição do Salon du livre de Paris, o que este nosso analista descreve: Loin du tapage médiatique de l'an dernier - aidé par de fortes subventions gouvernementales et une sympathie générale pour ce qui vient du Québec -, le Portugal s'apprête à prendre la relève à sa façon, plus discrète, moins flamboyante. Tão discreta foi a presença de Portugal que o Presidente do Salão do Livro de Paris, Serge Eyrolles, refere que a comunidade portuguesa contribuiu para o aumento de visitantes e não poupa elogios a Portugal: dinamismo, entusiasmo, inédita cobertura dos media franceses: uma loucura. Mais traduções, mais livros vendidos, mais participação de escritores.
E para que não restem dúvidas ao nosso infeliz comentador do Le Devoir, e já que gosta tanto de comparações, é bom que desta tenha conhecimento, proferida pelo próprio presidente do evento e partilhada pela quase totalidade dos jornalistas, críticos literários, editores, curiosos, etc.: Foi isso mesmo, uma loucura, uma grande vitória, o melhor Salão de sempre, em visitantes, vendas e entusiasmo. O investimento de Portugal foi imenso, a repercussão dos media extraordinária, com mais rádios, mais jornais. E a presença portuguesa foi a mais dinâmica, simpática e verdadeira de que me lembro - diz Eyrolles, que pode lembrar-se de nove edições anteriores, tantas quantas presidiu, onde se inclui a participação do Quebeque, como país convidado. Por outro lado em termos institucionais, nunca antes, ambos os chefes de Estado e de Governo haviam estado aqui juntos. Em termos simbólicos, queríamos que isto fosse um reencontro da comunidade portuguesa com os seus autores e a correspondência foi extraordinária. Atribuiria o aumento de visitantes à presença de portugueses, afirma ainda o Presidente do Salon du livre de Paris. E o aumento, senhor jornalista do Le Devoir, é de nove por cento. O ano passado, 221 mil, este ano 234 mil visitantes. Para moins flamboyante et discrète présence Portugal não está nada mal!.
E agora, o nosso jornalista mente descaradamente ou tão só não esteve lá ou ainda foi directamente ao bar e aí ficou, quando refere: La rumeur veut que les invités portugais se soient arraché les invitations du Salon. Bref, le Québec n'aurait pas le monopole de ce genre de polémiques. A realidade é outra. Em primeiro lugar, quem teve de acotovelar-se para arranjar um lugar numa sala que contasse com a presença de um escritor português, foram os jornalistas em particular e o público em geral. Ao que parece, o jornalista do Le Devoir é que não esteve para apertos e preferiu as salas mais vazias com escritores quebequenses ou mesmo franceses, já que, com os olhos vendados do chauvinismo, nada mais viu senão o Quebeque e os países francófonos. Se tirasse a venda do preconceito dos olhos e tivesse lido O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, poderia ter-se apercebido do mesmo que, entre muitos outros, pôde constatar a enviada do jornal Público, Alexandra Lucas Coelho, que na sua crónica de Domingo, 19 de Março de 2000, escreve: Mia não fala francês. Mas a sala estava lotada e riu às gargalhadas. Agustina fala um francês de Balzac. A sala estava cheia e riu às gargalhadas. Saramago fala francês com sotaque português. A sala transbordava e ninguém falou de literatura. Mário de Carvalho fala francês, ponto. A sala estava completa e falou-se do PCP.
Por isso vejam como o jornalista do Le Devoir, cai facilmente no ridículo quando diz: Avec ses 40 invités, dont plusieurs ne parlent pas français, et une littérature encore peu traduite, le Portugal pourra difficilement rivaliser avec les cent et quelques auteurs québécois de l'an dernier (dont bon nombre s'étaient invités eux-mêmes). Mais uma vez a realidade é outra: Na Livraria de Portugal (edições francesas de livros de língua portuguesa, 20 mil expostos, 40 mil em stock) venderam-se 18 mil livros e esgotaram completamente os discos que a equipa do suplemento Sons do PÚBLICO elegeu como os 100 (acabaram por ser mais) obrigatórios.
E finalmente, apreciemos este naco de mau gosto: Si Fernando Pessõa avait su, lui qui a laissé à sa mort 27 543 manuscrits dans une malle écrits à la main sur du vulgaire papier.... Apetece dizer como Almada-Negreiros: Ah era para ter piada meu bruto?
À tentativa de diminuir Portugal e a Embaixada presente no XX Salon du Livre de Paris por parte da imprensa do Quebeque, de que o Le Devoir é um dos seus representantes, exímios em chauvinismo e ignorância e de manufacturação da opinião pública quebequense, responde a imprensa francesa: La folie é como o diário Le Parisien exalta o balanço da 20ª edição do Salão do Livro e que também entende este êxito como uma resposta da comunidade portuguesa em França: Vieram em grande massa sábado e domingo. E aqui, queria destacar o trabalho de três organizações, pela divulgação: Radio Alpha, Cape Magellan e Colectividades Portuguesas em França.
Obrigado por serem tantos , diz Saramago, ao entrar numa sala com mais de mil pessoas e que mostra bem como os franceses acarinharam esta presença de Portugal no XX Salon du Livre de Paris, onde os traços da sua presença são visíveis por toda a cidade de Paris: há ainda cartazes portugueses nas ruas, há montras de livrarias com as traduções de livros dos nossos autores, há uma promoção de três meses em livraria, há uma votação dos leitores entre os títulos seleccionados. Há 25 publicações com dossiers dedicados a Portugal - desde L'Express ao Le Nouvel Observateur, ao Le Monde e ao Libération, passando por revistas de grande consumo: Paris Match, Elle, Télérama, Epok.
Cremos ter feito o que ao jornalista profissional do Le Devoir faltou: uma recolha exaustiva do que se passou em Paris e que testemunha, inequivocamente, a importância da Literatura Portuguesa no Mundo, a jogar num território de língua estrangeira, o Francês. O Quebeque ainda teve esta vantagem de jogar em casa, em termos linguísticos.
Mas preferimos o entendimento que, nobremente, Lídia Jorge tem destas questões. Façamos votos para que se torne realidade o que preconiza a escritora e se evitem os chauvinismos que temos vindo a referir: Quando cada homem é um território e os continentes já não são os que estão lá, a literatura é o único meio. Tenho uma grande esperança nos novos escritores que querem quebrar essa culpabilidade. Não há cicatriz. A ferida agora é outra.