Ao contrário de outros
anos, em que as comemorações da Revolução
dos Cravos se tornou num ritual passadiço, este
ano as celebrações do 25 de Abril, data
histórica para o Portugal democrático e
moderno, tiveram a dignidade e o cunho revolucionário
que este dia deveria impor sempre. Este ano as comemorações
tiveram honras da diplomacia portuguesa (embaixador e
cônsul-geral) e de altos dignitários da política,
da cultura e das letras montrealenses, de que se destacam
os escritores Sergio Kokis e Robert Boivin, os políticos
Helen Fotopulos, Luís Miranda, os deputados Thomas
Mulcair e Alexandra Mendes, a directora do departamento
de línguas e literaturas modernas, da Universidade
de Montreal, Monique Moser-Verrey e Georges Bastin, o
seu sucessor. E muitos outros.
Uma
revolução que se celebrou este ano com outra
revolução: a dos capitães de Abril
há 35 anos em Portugal e a dos homens e mulheres
das artes e das letras, aqui, em solo frio da América
do Norte, que souberam impor dois dos maiores tesouros
portugueses, a sua pujante literatura e a arte do azulejo.
Assinaturas
portuguesas que agora ficam expostas em 12 bancos de granito,
colocados ao longo de uma das ruas mais movimentadas desta
metrópole, onde reside grande número de
portugueses. Ao Parque de Portugal, uma das primeiras
marcas da presença portuguesa em Montreal e o primeiro
parque comunitário da cidade, juntam-se agora doze
pequenos textos dos autores mais representativos de
cada período da literatura portuguesa, do século
XIV aos nossos dias: D. Dinis, Gil Vicente, Luís
Vaz de Camões, Padre António Vieira, Bocage,
Eça de Queirós, Antero de Quental, Fernando
Pessoa, Miguel Torga, Natália Correia, José
Saramago e António Lobo Antunes. Os doze bancos
em granito onde se inscrevem pequenas frases desses escritores
portugueses foram ilustrados com azulejos concebidos por
quatro artistas plásticos que por aqui vivem e
criam: Joe Lima, Joseph Branco, Miguel Rebelo e Carlos
Calado.
E, assim, pouco a pouco,
se vão gravando memórias, porque estas,
como diz Agustina Bessa-Luís, procriam como
se fossem pessoas vivas. Há quem preferisse
o pagode chinês ou a pizzalajaria
italiana, com fronteiras e clichés a marcar a presença
das respectivas comunidades. Há quem preferisse
um paradigma de afirmação agressiva e patrioteira
com o Galo de Barcelos no leme de uma qualquer caravela,
com joaquinzinhos desembarcando um padrão das descobertas.
E se é verdade que
os homens e mulheres de Abril não sabiam que era
impossível derrubar o regime fascista implantado
durante 48 anos, também Isabel
Santos e as suas tropas não sabiam ser possível
assinalar a presença portuguesa em Montreal com
literatura e azulejos. E, porque não o sabiam impossível,
fizeram-no. E, aquilo
que pareceu ser uma utopia a muitos, uma afronta a outros,
uma intelectualisse a bastantes, aí estão
diante dos olhos de toda a gente, doze bancos de granito,
de bom senso e bom gosto, assentes nos passeios
da cidade de Montreal, percorrendo o boulevard Saint Laurent.
O sonho de demarcar um bairro
português em Montreal é antigo e a sua concretização
tornou-se um pesadelo de promessas sucessivamente acesas
perto das eleições e apagadas logo depois
pelo desinteresse dos políticos do burgo e de alguns
portugueses mais dados a paleio ebairrismos bloqueadores
do que a obra feita. Um "velho sonho" referido
pelo político Luís Miranda, que não
se deu conta de que aquilo que anunciava em nome do Presidente
da Câmara de Montreal não passava de um sonho
velho da comunidade portuguesa na cidade, originando
vários movimentos que não alcançaram
o resultado desejado, como há tempos referia
a Lusa.
Sem que tivesse a ver com
as démarches anteriores frustradas, Isabel
dos Santos apresentou ao Conselho do Bairro do Plateau
Mont-Royal, a 6 de Fevereiro de 2006, uma proposta de
criação de um Bairro Português, integrado
no plano de requalificação da centenária
rua de Saint-Laurent, proposta que viria a ser aprovada
por unanimidade. A ela cabe de resto o mérito de
ter concretizado um projecto inovador, e tanto mais inovador
é, quando comparado com os dois bairros de comunidades
étnicas já existentes que recorreram a fronteiras
assinaladas com pórticos para a sua delimitação.
O nosso bairro será um espaço sem fronteiras,
no qual as pessoas irão aperceber-se de que estão
numa zona portuguesa pelo seu ambiente próprio
e pelos tópicos da identidade lusa, explicou
à Agência Lusa, Isabel dos Santos. A vereadora
criou um grupo consultivo representativo do maior número
de sensibilidades que, desde logo, propos, para além
das frases inscritas no boulevard, um tipo de estandartes
sinalizadores de que se está no Bairro Português,
a colocação de quiosques idênticos
aos que existem em Portugal, a plantação
de oliveiras e um local próprio para instalação
da bandeira portuguesa,
proposta do então Conselheiro das Comunidades,
Francisco Salvador. As bandeiras e os bancos já
lá estão, aguarda-se a concretização
dos outros projectos.
Cedo compreendeu Isabel
dos Santos que teria de nomear outro grupo para a escolha
das frases, o denominado grupo os Frasistas,
responsável pela selecção das citações
inscritas nos bancos. Este grupo conheceu várias
etapas que dá a conhecer num jornal que editou,
primeiro em suporte papel e, agora,
também em formato digital. Complementar
a este grupo uma outra equipa foi formada, a equipa responsável
pela tradução para francês das frases
em Português.
Perante uma assistência de duas centenas de pessoas,
Sua Excelência o embaixador de Portugal no Canadá,
Pedro Moitinho de Almeida enalteceu este projecto de palavras
e azulejos, realçando o contributo decisivo dos
dois professores da Universidade de Montreal, o professor
Luís de Moura Sobral e o dr.
Luís Aguilar. Para o primeiro, em declarações
à Lusa, esta proposta da comunidade portuguesa
é radicalmente inovadora e parece estar já
a servir de exemplo para outras propostas de comunidades
culturais. Do ponto de vista estético, são
obras que podiam estar em qualquer parte do mundo, inclusivamente
em Portugal, exactamente com as mesmas características
estéticas. Revejo-me como português nestes
bancos tal como me revejo na obra dos criadores [portugueses]
actuais, numa Paula Rego, Júlio Pomar e outros.
Já para
o dr. Luís Aguilar, em declarações
à TVPM de Montreal e ao jornal A Voz de Portugal
disse: - Fui solicitado a integrar este projecto na
sequência de um pedido de colaboração
endereçado ao Instituto
Camões, à Coordenadora do Gabinete de
Apoio Pedagógico da Direcção de Serviços
de Coordenação do Ensino do Português
no Estrangeiro, dra. Fernanda Barrocas, que passou para
mim a missão de participar no projecto, em nome
daquela instituição responsável pelo
ensino, promoção e difusão da Língua
Portuguesa no exterior. Estava longe de imaginar o trabalho
que iria ter e que ultrapassou largamente o pedido inicial
de ajudar a escolher frases para os bancos. Confesso hoje,
que valeu a pena. Foram horas de discussão sobre
critérios de difusão da ideia pelos media,
de tempo a responder, de procura do contacto exacto em
que cada frase havia sido produzida, discussões
sobre quotas de autores açorianos, etc. Hoje orgulho-me
de ver, ao contrário do que é habitual,
a assinatura portuguesa traduzir-se na divulgação
de alguns dos maiores nomes da nossa literatura e de constatar
o orgulho que sentem os portugueses e luso-descendentes
pelas marcas literárias que descansam nos bancos
ornados de azulejos e a vontade de se apropriarem do conteúdo
de cada citação e de cada autor. Gente que
antes víamos vibrar com os feitos da selecção
portuguesa de futebol, vemos agora ufanos por saberem
que os seus melhores escritores permanecen ali mesmo,
à mão de semear dos passantes. Orgulhosos
por saberem que os quebequenses e membros de outras comunidades
étnicas elogiam o projecto.
Alexandra Mendes, deputada
no Parlamento federal em Otava, manifestou à Lusa
estar encantada com o resultado: este é um
dos poucos projectos que realmente representa o que nós
[Portugueses] somos, sem ser folclórico. Tem a
nossa cultura, as nossas artes, disse.
As frases e as respectivas
ilustrações em azulejo foram apresentadas
numa brochura de grande qualidade gráfica e de
conteúdo que, quanto a nós, mereciam melhor
papel e maior tiragem. Merecia melhor esta inauguração
quanto à apresentação das frases
por duas meninas que as trocaram ou omitiram a seu bel-prazer
num tom arrastado de escola primária.
E as celebrações
continuaram no restaurante português e bar de petiscos
Portus Calle, onde a chefe Helena Loureiro juntou à
arte do azulejo e da literatura a sua arte: a gastronomia
portuguesa.