Pedras
no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo...
Fernando
Pessoa.
Queira-se ou não,
a instalação de doze bancos, como aquele
em que me abanco, tendo a meu lado a frase de Bocage
que pode iluminar esta crónica arcádica
(Fado amigo não há nem fado escuro:
Fados são as paixões, são as vontades),
constitui, em si mesma, uma importante e inovadora intervenção
no espaço urbano de Montreal. E, assim, pouco a
pouco, se vão gravando memórias, porque
estas, como diz Agustina Bessa-Luís, procriam
como se fossem pessoas vivas.
Antes de escrever seja o
que for, gostaria de citar, longamente a opinião
de um ilustre visitante a Montreal, Alexandre
Nobre Pais, responsável do Departamento de
Inventário do Museu Nacional do Azulejo em Lisboa
e que, na sua passagem por esta metrópole, escreveu:
Gostei muito de Montreal, é de facto uma cidade
multicultural, fervilhante de energia, mas que, ainda
assim, mantêm uma série de traços
das raízes dos vários povos que a constituem.
Devo dizer que apreciei particularmente o modo como a
comunidade portuguesa soube escolher o azulejo como elemento
identitário do “seu território”,
a Rue de Saint Laurent. Penso que o conceito –
a integração dos bancos na paisagem, associando-lhes
a poesia e os revestimentos cerâmicos - é
muito conseguido e traduz, de facto, o nosso perfil colectivo,
a um tempo uma presença discreta, mas cuja permanência
é sempre confortável. Os bancos
que observei pareceram-me muito bem conseguidos: a relação
entre os poemas e os temas tratados na azulejaria que
surge integrada nos mesmos bancos, sintetiza a própria
essência da criação do azulejo. Peças
criadas expressamente para um local, o qual enriquecem
de significados e que, uma vez removidos, descontextualizados,
empobrecem, permanecendo deles somente o sentido decorativo.
No quadro das actividades
que desenvolvemos na empresa Amarrage
sans frontières, tivemos a oportunidade
de testar o impacto das novas assinaturas portuguesas
no Boulevard Saint Laurent. Tivemos, igualmente, a oportunidade
de recolher opiniões emitidas a partir da nossa
reportagem sobre este mesmo assunto. Umas recordando intervenções
anteriores, outras felicitando a iniciativa, algumas contra,
umas do estilo "não vi, mas não gostei"
e bastantes a sugerirem outras intervenções.
Todas, no entanto, podem servir para o desenvolvimento
das assinaturas portuguesas no boulevard ou se preferirem,
para a continuação da criação
de um Bairro Português. E, porque temos todo o interesse
no futuro, já que será nele que iremos ficar
o resto das nossas vidas, há que aproveitar a maré
e projectar novas assinaturas portuguesas para o Bairro
Português.
Os dois grupos que animámos
ficaram surpreendidos pela inovadora ideia de assinalar
com frases literárias ilustradas com azulejos,
a presença de portugueses ao longo de mais de cinquenta
anos em Montreal e as impressões são excelentes,
mas não isentas de críticas de que daremos
conta nesta reportagem. Daremos igualmente, conta das
reacções de várias pessoas que nos
escreveram e que mais não evidenciam o que diz
o nosso Nobel, na sua Jangada de Pedra: ... cada
um de nós vê o mundo com os olhos que tem,
e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade
do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de
pedra, e altas proas, ainda que sejam de ilusão.
Começam,
as nossas "cobaias" por referir ser muito pouca
a simbologia (que, no fim, se resume ao Parque de Portugal
e aos bancos) para assinalar uma forte presença
comunitária. Ainda mais escassa a simbologia é,
quando se fala em Bairro Português, sobretudo numa
altura em que os lusitanos começam a zarpar daqui.
Pensamos ser mais correcto falar-se de assinaturas portuguesas
que assinalam a forte contribuição lusa
ao longo de mais de cinquenta anos, para a construção
e renovação de uma parte de uma das artérias
principais de Montreal. O reconhecimento por parte da
Câmara da existência de um Bairro Português,
a par do italiano e do chinês, é tardio e
foi preciso ter havido uma vereadora portuguesa no município
para que tal milagre se operasse. Antes, várias
personagens, de mãos nos bolsos, apareceram a prometer
um Bairro Português, geralmente, perto da abertura
da caça ao voto, mas a esquecerem a promessa por
cumprir, sempre com os parolos enganados a liberalmente
votarem, seguindo a cenoura do reconhecimento do afamado
bairro.
Aliás,
a este propósito, Manuel Carvalho, na
mesma linha, refere-nos que continua
a existir uma zona nebulosa no que respeita ao Bairro
Português. O que tivemos foi a inauguração
da assinatura dos bancos. Será que irá ser
completada? Com os estandartes e os quiosques? Entretanto,
teremos mais uma marca, uma bela marca, mas ainda não
será o Bairro. Um Bairro aberto, sem fronteiras,
como a Isabel sonhou. Mas em todo o caso um Bairro. Até
lá, o Bairro Português continuará
a ser um espaço afectivo que cresceu à beira-Main.
Por
seu turno, o pastor Marques da Silva comenta: Na verdade,
já era tempo de muita espera que o "Bairro
Português" tivesse nota condigna. Merece mais;
e esperemos que os "bancos" não venham
a ser "símbolos" de que, se "alguém
espera para alcançar, sente-se, e sonhe até
que chegue"...
Nas
várias críticas e sugestões que conseguimos
registar destaca-se o facto dos bancos estarem, por um
lado, ou muito distantes ou muito perto uns dos outros
e, por outro, de estarem colocados dos dois lados da avenida,
o que dificulta a tarefa de seguir o percurso literário
dos autores, ideia central do projecto e que, com esta
desregulada colocação se desvirtua. Sugere-se,
ainda, algo que anuncie que há bancos para ler:
uma placa no início, um estadarte...
O banco situado
em frente à agência funerária leva
o Miguel
Torga de caixão à cova, comentaram
alguns, já que, pela cor e pela forma, e aí
colocado, o banco mais parece um túmulo, onde o
morto se acomoda mal. Assim nem a agência agradece,
graceja alguém. Há mesmo quem tivesse sugerido
que esse banco não foi posto ali por acaso insinuando
pedido expresso da Funerária (!).
A ideia
de aliar azulejos e literatura é excelente, mas
o granito poderia ter sido de outra cor, pois fica muito
parecido ao que se vê nos cemitérios,
insiste mais um. Os azulejos podiam aligeirar a coisa,
mas colocados da forma de que estão são
de difícil visibilidade.
Sobre a escolha das frases
por parte dos frasistas (grupo constituído por
Caroline Soulié, Joaquim Eusébio, Isabel
Santos, Luís Aguilar e Tina Santos) a generalidade
das pessoas considera acertada a escolha dos autores,
representativos, em cada século, das várias
correntes, estilos literários e sua relevância,
lamentado só haver uma mulher e Almeida Garrett
ter sido preferido em função de Antero de
Quental. É realçado, igualmente, o facto
das frases serem de simples compreensão e de forte
impacto, à natural excepção dos clássicos
mais antigos. Para isto muito contribuíram as várias
consultas junto dos públicos mais diversificados.
No Boletim dos Frasistas se dá conta da forma como
todo o processo de selecção das frases decorreu:
A qualidade
das traduções é realçada por
uns, pelo cuidado de tratamento quebequense do Francês,
mas criticada por muitos. Porque razão se adultera
a frase de Saramago: Hoje, uma língua que não
se defende, morre, traduzida Aujourd’hui,
une langue qu'on ne défend pas est condamnée
à morrir. Não seria mais fiel à
escrita afirmativa e contundente de Saramago a tradução
seguinte: Aujourd’hui, une langue qui
ne se défend pas, meurt.
Quem
queira encontrar uma relação entre a frase,
o autor e os motivos dos azulejos, perde-se na diversidade
das criações. Se extremamente directas no
caso do Carlos Calado, cujos trabalhos apresentam a imagem
dos escritores e às vezes frases, já os
símbolos trabalhados por Miguel Rebelo, salvo para
quem ligue o nome de Torga à urze, são de
difícil associação. Dificilmente
se compreende, igualmente, a imagem muito semelhante ou
que faz lembrar os símbolos Yin e Yang relativos
ao escritor António Lobo Antunes. Quanto às
simbologias de Joe Lima para os escritores D. Dinis, Padre
António Vieira e Fernando Pessoa são elas,
na opinião dos nossos interlocutores, ilustrativas
das respectivas citações. Joseph Branco
retrata bem a citação do poeta Antero de
Quental, para muitos a melhor ilustração
de todos os bancos. Mais dificil será compreender
os azuleos de Gil Vicente e de Bocage, mas as explicações
dadas pelo artista sobre as suas criações
no Cahier-souvenir
publicado
e distribuído pela Câmara de Montreal,
fornecem-nos elementos importantes
para a decifração dos sentidos e formas.
Demasiado
discretos os bancos passam despercebidos, diz-nos
uma jovem lusa, que nos revela ter encontrado melhor num
outro projecto anterior. E fornece-nos uma foto exemplar.
Ao leitor propomos descobrir as diferenças e à
jovem, sugerimos que melhor perceba o que é um
plágio e que distinga erro ortográfico de
gralha. Erro ortográfico é o que dão
certos meninos que até escrevem nos jornais e gralha,
como nos recorda o saudoso Prado Coelho, é
um pássaro tresloucado que pousa num texto.
De resto é notável que em todos os bancos
se registe apenas uma gralha. Facilmente se compreende
que quem, de berbequim na mão, teve a estucha de
pôr letra a letra nos bancos as frases que correctamente
os frasistas lhe enviaram (estes também tiveram
o seu fardo) está exposto à gralha. Aparece
escrito num dos bancos Libedade em vez de Liberdade.
O que é, a nosso ver, criticável é
o facto de a Câmara de Montreal, sobejamente alertada
para o facto, não se ter dignado corrigir ainda,
como lhe compete, a gralha.
Sylvio Martins
questiona-nos sobre a razão pela qual referimos
na nossa reportagem o 25 de Abril, já que falar
nessa data, não dignifica em nada o evento
que foi celebrado em Montreal. E continua: Estávamos
no mesmo parque, durante todos os discursos nunca falaram
do 25 de Abril nem da data comemorativo que foi o 35º
aniversário do 25 de Abril. A única
referência foi o cravo no banco… e nem explicaram
a significância (sic.) deste gesto aos
presentes. Ouvimos, com certeza, coisas diferentes,
mesmo a Inês Faro que fez a reportagem para o jornal
de que Sylvio é o chefe de redacção,
se refere à Revolução dos Cravos.
Que o Sylvio e os Velhos do Restelo (alguns pouco mais
têm do que vinte e cinco anos) evocados por Isabel
Santos, no seu discurso preferissem o 13 de Maio (já
agora o 28 do mesmo mês) até conseguimos
entender, mas conseguir negar o que toda a gente ouviu,
leu e escreveu parece-nos excessivo.
E terminamos o anedotário
(uff!) com a pérola das pérolas: a ligação
do singelo projecto dos bancos a esquemas de corrupção.
Exportamos também para esta metrópole o
Freeport?
Eis os indícios de corrupção apontados
pelos genuínos fazedores de escândalos: o
Banque National teria subsidiado às escondidas
os bancos, a troco de publicidade induzida ou subliminar!
Eis a prova cabal do acto criminoso de corrupção:
a similitude do emblema do banco canadiano com a forma
dos bancos de pedra, palavras e azulejos.
Saliente-se, por fim, a ênfase
que os membros do European Book Club de Montreal conferiram
às palavras portuguesas inscritas nos bancos espalhados
pela rua Saint Laurent e propuseram uma visita guiada
no âmbito do Festival International de Littérature,
que decorre de 19 a 25 de Setembro e onde Portugal se
faz representar pela primeira vez.
É de referir ainda o projecto Renaissance concebido
por Alberto Feio, que consiste na produção
de um documento audio-visual, onde se fala das 12 frases
e dos respectivos autores com apontamentos de reportagem
relativos às várias criações
de azulejos.
Bom futuro parecem ter os bancos de pedra, de palavras
e azulejos.
Promenades
littéraires portugaises
Marcher
au long du Boulevard Saint Laurent comme dans les pages
des livres des grands auteurs de la littérature
portugaise du XIVe siècle jusqu'à aujourd'hui.
P.S.:
Como toda a gente que me
conhece sabe muito bem, não pretendo ter quaisquer
visibilidades nesta comunidade ou nutrir guerritas de
alecrim e manjerona protagonizadas por galitos de capoeira,
nem alinhar nesses pensatempos lusitanos de disparar
nos próprios pés. Estando fora do meu país
não me apetece viver aqui o que lá acho
mau. Faço nesta paróquia aquilo que me vai
dando na gana, com entusiasmo, mas distanciada, descomprometida
e de forma anónima. Mas para quem, convenientemente,
diz desconhecer as realizações de interesse
comunitário de quem escreve este texto
esclareço que me entreguei de corpo e alma a dois
projectos jornalísticos durante anos a fio, o
LusoPresse e a LusoMontreal, para já
não falar dos inúmeros artigos que também
escrevi para A Voz de Portugal e a colaboração
regular que dei à emissão Portugal Magazine.
Ensinei em duas escolas comunitárias durante quase
uma década. Divulgo e promovo, desde o início
do século, junto das comunidades anglófonas
e francófonas, a cultura portuguesa, através
da actividade que desenvolvo na empresa Amarrages
sans frontière e no Centre d'Histoire
de Montréal. Traduzo regularmente textos do
português para francês e inglês e vice-versa
e sou tradutora para língua portuguesa das obras
de um dos escritores quebequenses de maior nomeada, Sergio
Kokis. Para além disso, colaboro em muitos projectos
universitários sobre língua e cultra portuguesas,
ocupando, actualmente, o posto de auxilliaire d'enseignement
na Universidade de Montreal. Participei com muito gosto,
ainda que anonimamente, no projecto dos Bancos de
Pedra e de Palavras que aqui se descreve e foi com
orgulho redobrado que participei como animadora no projecto
Renaissance de Alberto Feio e nas Promenades
littéraires, integradas no Festival Internacional
de Literatura de Montreal. E, finalmente, fiz esta singela
crónica sobre os bancos, em plena liberdade de
opinião e distanciada das gangues de bairro organizadas,
que tudo avista apenas do seu umbigo, com uma visão
limitada das coisas e do mundo e quantas vezes sem a mínima
decência. Até que chegue o bairro português,
os portugueses vão zarpando e os gauleses vão
chegando ao boulevard.
Que registem (com agrado,
claro) que continuarei o elogio entusiasta de bancos
e frases e queiram fazer o obséquio de registar
também que nisso estou muito bem acompanhada. Porque
nunca é tarde para ver, espero que aqueles que
agora se enervam (comportamento típico lusitano
que apedreja tudo o que mexe) com esta intervenção
no espaço urbano de Montreal, alcancem o significado
destas assinaturas portuguesas até que
chegue o bairro português.