Meus amigos, duas palavras
apenas sobre o vídeo aqui projetado. Creio que tenho
de dar um esclarecimento. Esse vídeo foi feito pelo meu
filho Gofredo Telles Neto, no começo da década
de 80, quando eu tomava posse na Academia Brasileira de Letras.
A assistente de Gofredo Telles Neto é a filha de Glauber
Rocha, Paloma Rocha. Vocês viram que foi um vídeo
bastante revolucionário, jovem, diferente dos tradicionais
documentários em torno dos escritores. Eu inclusive aparecia
em alguns lances — eu também já fui jovem
— na juventude, remando, jogando maçãs,
ou laranjas, lá sei eu o quê eu estava jogando
para alguém. O meu próprio filho apareceu pequenino,
de macacão e com um chapelão e no meio de um jardim.
Estávamos numa fazenda. Esse vídeo foi premiado
em Brasília e me agrada muito, porque foi feito justamente
desrespeitando, a palavra talvez seja essa, toda aquela linha
tradicional dos documentários em torno dos escritores.
Aliás, deixem-me dizer-lhes que a freqüência
— a sala repleta todos os dias — a esse belíssimo
seminário dirigido e inventado por Aldo Rebelo, é
naturalmente o prêmio maior, a recompensa maior a tanto
esforço.
Voltando ao que eu dizia,
os documentários em torno dos escritores em geral mostram
muito o escritor sentado. Escritor não é assim.
Escritor é assaltado pelos seus demônios e pelos
seus anjos também. Então, toda essa aflição,
essa turbulência, tudo isso de um certo modo apareceu
nesse documentário, no momento em que — vocês
estão lembrados — há duas vozes que não
se chocam, mas se comunicam e se separam. É justamente
a divisão nossa, no cotidiano. A divisão do ser.
A divisão dessa condição humana que somos
nós, que pretendemos muitas vezes o equilíbrio,
a calma. Pretendemos muitas vezes aquela serenidade, mas de
repente vem aquele assalto. As personagens vivem como nós
mesmas, como nós mesmos, os escritores. As personagens
têm vida própria. Elas exigem um lugar ao sol.
Elas são muitas vezes arrogantes. As personagens muitas
vezes vêm me cobrar:
— Escuta, você
me tirou no romance As Meninas. Você me matou.
— Não, não
matei, Ana Clara", viciada em drogas. Não, você
precisava morrer.
— Eu tinha tanta
coisa interessante para dizer e você não deixou.
As personagenes vêm
tomar satisfações. As personagens batem à
porta, segundo Pirandello, exigindo um papel, exigindo uma destinação.
Agora o escritor tem de ser livre e as pessoas também.
Sartre abominava a condenação das personagens
em relação à destinação.
As personagens criam vida própria e tomam suas rédeas,
mas cuidado, hein! Elas não podem tomar uma liberdade
excessiva. De certo modo, o escritor tem de agarrar as rédeas
e — ele — ter a liberdade de conduzir. Mas sem truncar
essa espontaneidade que faz parte da nossa natureza.
Eu queria começar
este depoimento desalinhavado. Eu não tenho inveja, nunca
consegui ter inveja de nada, nem de ninguém, mas às
vezes fico encantada quando vejo professores, os professores
que por aqui passaram, com tamanha disciplina e nitidez, exporem
suas idéias. Eu sou um pouco tumultuada. Eu peço
desculpas, mas é assim que sou. O ficcionista não
tem essa disciplina. Eu escrevi um livro chamado Disciplina
do Amor, mas me disseram que amor não tem disciplina.
Eu disse: "Tem. Uma certa disciplina o amor tem".
Digamos que eu fiquei encantada
com a disciplina, com a nitidez e, pelo menos, a aparente tranqüilidade
com que os professores aqui expuseram suas idéias sobre
a língua portuguesa. Eu serei uma pouco mais tumultuada,
mas, enfim, vocês não entender.
Ficcionista é outra
raça. E depois, nós, ficionistas, como escreveu
Santo Agostinho em A Arte de Viver em Tempos de Catástrofe,
"estamos vivendo num tempo difícil". Eu tenho
paixão por Santo Agostinho. Nós estamos num planeta
enfermo. Então, nós temos de conservar o máximo
dentro de nós mesmos uma certa paz interior para podermos
dizer isto. Pelo menos o que estou dizendo neste instante. E
começo fazendo uma homenagem, mas uma homenagem muito
apaixonada, a esse escritor, pregador e educador do século
XVII e que se chamou padre Antônio Vieira. Nascido em
Lisboa, menino veio com os pais, desembarcou em Salvador, Baía
de Todos os Santos, freqüentou o seminário, o colégio
jesuíta. A paixão de Antônio Vieira pelo
Brasil sempre me comoveu, porque eu o considero o primeiro grande
escritor da língua portuguesa: padre Antônio Vieira.
E nisso estou partilhando da opinião de Fernando Pessoa,
que, mais de trezentos anos depois, considerava também
padre Antônio Vieira como o mais exemplar, o mais extraordinário
poeta — poeta, hein! — poeta e prosador da língua
portuguesa. Eu teria então, antes e acima de tudo, de
fazer essa homenagem a padre Antonio Vieira.
Ainda mais o nosso querido
amigo João Alves das Neves disse: "Padre Antônio
Vieira serviu com tanto empenho a Portugal e o Brasil que os
confundiram num só, apesar de separados ou unidos pelo
Atlântico".
A paixão do padre
Vieira era o Brasil, sem esquecer Portugal. Eu me apaixonei
também por esse prosador, por suas Cartas e seus Sermões.
E estou acompanhada, repito, nesse meu empolgamento pelo poeta
maior Fernando Pessoa, que afirmava que lia a obra de Vieira
em prantos. Ele se emocionava e chorava.
Há ainda a famosa
frase que hoje corre pelo mundo todo, que já ultrapassou
todas as fronteiras: "Minha pátria é a língua
portuguesa". Quem a teria inspirado para Fernando Pessoa?
Vieira. "Minha pátria é a língua portuguesa".
É uma coisa deslumbrante, porque ele amou o Brasil e
amou Portugal com o mesmo amor, de um mesmo ser que habita o
chão, chão este dificílimo. Estávamos,
já disse, no século XVII. Vieira nasceu em 1608,
em Lisboa, e morreu no Brasil já velho, com 87 anos.
Mas ele viveu mais de cinqüenta anos, com pequenas incursões,
no Brasil. Por quê? Ele se apaixonou pela causa maior
dos índios e dos negros. Foi realmente o primeiro abolicionista
que tivemos. E tanto ele lutou pela causa dos negros e dos índios
que não foi canonizado! Ele não podia ser canonizado!
Ele foi perseguido, inclusive sofreu a prisão da Inquisição.
Por quê? Ele era arrogante, ele desafiava, ele lutava
pelos direitos humanos, os tais direitos humanos hoje tão
desrespeitados na nossa pátria e em todo, parece, planeta
enfermo. Vieira foi o primeiro batalhador por esses direitos,
vivendo num planeta tão difícil, com tantas dificuldades
no cotidiano, ao menos ele quis dar ao homem — fosse ele
negro, amarelo, "azul", pobre, rico, não interessa
— a dignidade que esse ser merece e que de fato não
tinha na época. O índio e o negro eram escravizados.
Tanto que Castro Alves, e estou vendo aqui no plenário
o Aldo Rebelo, que tem paixão por Castro Alves —
já vou falar melhor sobre ele — também foi
abolicionista. Aliás, a poesia lírica de Castro
Alves talvez seja mais bela do que a poesia social. Eu acredito.
A poesia lírica dele era extraordinária. Contudo,
a poesia social é a que nos interessa neste instante.
Política e socialmente falando, é a poesia que
interessa a um país, com perdão, do Terceiro Mundo.
Então, eu queria
dizer que a paixão minha pelo padre Vieira, que vivia
entre Portugal, sua pátria amada, e o Brasil, tem raízes
mais profundas, porque o padre Antônio Vieira descobriu
uma coisa extraordinária, sobre a qual ninguém
falara ainda. Descobriu o inconsciente. Ah, o inconsciente!
O que é o inconsciente? É aquela coisa velada,
aquela coisa escondida que cada um tem e que no discurso o Diabo
Mudo — olha o diabo mudo! — ele revelou. O diabo
mudo, a inconsciência, a inconsciência, a inconsciência.
Tantos anos depois, o pai
da Psicanálise, Freud, viria a falar nessa inconsciência.
Um dia, talvez, eu possa voltar aqui e, então, poderei
dizer a vocês mais tranqüilamente o que me fundamenta
nessas idéias que me parecem ditas de maneira desalinhavada.
Mas vocês têm linha e agulha. Vocês vão
costurar o que estou dizendo. A costura fica por conta de vocês.
Então, o Diabo Mudo seria a fonte da revelação
ao inconsciente que Freud, Freud e tal!, descobriria depois,
mas seguindo a influência — eu ouso dizer isto —
de padre Antônio Vieira.
Meu tema é a "Língua
e Literatura". Quando entrei para a Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco, em São Paulo, eu li
um soneto de Olavo Bilac e fiquei impressionadíssima.
Eu era uma jovem, jovensíssima. É incrível
como eu já fui jovem! Eu preciso rever mais esse documentário
do meu filho que pegou flagrantes meus com o pai dele, que foi
meu professor na Faculdade de Direito no Largo de São
Francisco, Gofredo Telles Júnior. Eu me casei duas vezes.
Gofredo Telles Júnior foi o meu primeiro marido. Divorciei-me
dele e me casei depois com Paulo Emílio Salles Gomes,
o fundador da primeira escola de cinema em Brasília.
Além desses flagrantes, há outros ainda que poderiam
ter sido incluídos. É incrível! Como é
possível uma pessoa ter sido tão jovem.
Então, quando eu
entrei para a Faculdade de Direito, eu descobri Olavo Bilac,
parnasiano. Descobri Olavo Bilac e fiquei muito impressionada
com este verso: "
Ultima flor do Lácio,
inculta e bela,
És, a um tempo,
esplendor e sepultura".
Ah, eu fui falar com meu
pai:
— Pai, eu não
quero ser escritora numa língua que é esplendor
e sepultura. Eu não quero escrever nessa língua.
Por que mamãe não foi para a Europa?
Olha a alienada. Justamente
a alienação, a vontade do Primeiro Mundo, a fascinação
do Primeiro Mundo, de outras línguas, de outras terras,
outras gentes.
— Por que você
não mandou mamãe para Paris? Eu nascia lá
e tal e escreveria em francês. Ou então para Londres,
e eu escreveria em inglês.
Meu pai me passou o maior
pito. Meu pai era um homem bastante sonhador, meio desgarrado,
instável. Eu herdei dele a incapacidade para a vida prática.
Eu não sou boa na vida prática, no cotidiano.
Ele era um homem sonhador. Acho que sonho é o que nos
alimenta e o que nos sustenta e o que nos faz seguir em frente.
O sonho, o sonho! Meu pai era um sonhador. Eu devo ter herdado
dele essa capacidade de sonhar. Então, ele disse:
Menina, você não sabe de nada! Que horror! A língua
portuguesa é deslumbrante.
Falou muito sobre a língua
e depois disse:
— Esse soneto você
leu mal, porque tem um verso no qual Bilac diz em relação
à língua: 'Amo-te assim, desconhecida e obscura'.
E meu pai disse ainda:
— Este é o
amor deslumbrante, o amor verdadeiro. Você tem que amar
a sua língua assim: desconhecida e obscura.
Eu levei aquele pito enorme,
enfiei a viola no saco, como se dizia antigamente, e comecei
a escrever. E o meu amor pela língua foi crescendo à
medida que eu escrevia. Passei os anos na Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco escrevendo. De repente eu fiquei
tão feliz de me apoderar da palavra, e me apoderar da
palavra como eu me apoderava, digamos, quando eu andava a cavalo,
quando menina. Eu gostava muito de fazenda, do campo. Passei
minha infância em cidades do interior do estado de São
Paulo. Eu cavalgava, eu sentia a palavra: era o meu cavalo,
cavalo indócil. Às vezes empinava, mas ia! Com
aquela liberdade, aquela força com que eu ia naquele
cavalo, eu queria assim agarrar as palavras. Amo-te assim, desconhecida
e obscura.
Adiante ainda diz Bilac:
Amo o teu viço agreste
e o teu aroma
de virgem selvas e de oceano
largo.
Amo-te, ó rude e
doloroso idioma.
Tudo isso eu fui aprendendo
mediante um próprio amor que foi crescendo em mim por
esta língua que eu desdenhei no começo e pelo
qual de repente eu me apaixonei. E termina Bilac:
Em que da voz materna ouvi
meu filho,
em que Camões chorou
no exílio,
amargo o gênio sem
ventura e o amor sem brilho.
Esse soneto de Bilac foi,
digamos, o começo do meu amor, da minha paixão
pela língua portuguesa.
Eu devo dizer ainda que
esse amor foi aprofundado nos meus anos de Faculdade de Direito.
É uma pena que hoje as escolas literárias —
por exemplo, a escola romântica, a escola parnasiana de
que justamente Olavo Bilac fazia parte, a qual sucedeu a escola
romântica — é uma pena que as escolas literárias
não sejam mais estudadas no Brasil. É uma pena!
Justamente no pórtico de mármore da Faculdade
de Direito Largo de São Francisco estão inscritos
três nomes:
Álvares de Azevedo,
Castro Alves, Fagundes Varela. Nenhum dos três completou
o curso de Direito. Alvares de Azevedo, meu patrício
paulista, morreu com 21 anos. Ele dizia:
Se eu morresse amanhã,
viria ao menos
Fechar meus olhos minha
triste irmã;
Minha mãe de saudades
morreira
Se eu morresse amanhã!
Com 21 anos esse menino
morreu sem completar o curso na Faculdade de Direito. Lá
está o nome dele no pórtico da escola, em mármore:
Álvares de Azevedo. Castro Alves, baiano, morria com
24 anos; Fagundes Varela, com 33 anos morreu de beber. Era a
escola romântica. É curioso. Preciso dizer isso
a vocês. Fazendo uma conferência no Rio de Janeiro,
muitos depois de formada, sobre Álvares de Azevedo, o
poeta Carlos Drummond de Andrade sentou-se na primeira fila
e depois veio e me disse: "Lygia todos eles morreram tão
moços!"
O mais velhote deles foi
Gonçalves Dias, mas morreu, se não me engano,
com 41 anos. Carlos Drummond de Andrade, aquele poeta admirável,
me disse: "Eu vou dar um nome para essa escola, a Escola
Romântica brasileira: a Escola de Morrer Cedo" .
Ah, que lindo! A Escola de Morrer Cedo. É lindo isso!
Eu me lembro de que
uma vez, na Faculdade ainda, dei uma entrevista, e me perguntaram:
— Seus poetas
amados?
Eu disse:
— Álvares
de Azevedo, Castro Alves, Fagundes Varela, enfim...
Mas o rapaz me disse:
— Lygia, você
deve falar que seu poeta predileto é Maiakovski, poeta
russo.
— Mas eu não
li Maiakovski ainda.
— Mas fale,
porque calha bem.
Começava já
naquele tempo remoto, tempo dos dinossauros, na Faculdade de
Direito, essa invasão, a substituição dos
nossos valores por valores de terras mais importantes do que
a nossa, de nomes mais importantes do que os nossos.
— Mas eu não
li Maiakovski.
— Não
faz mal. Você tem que dizer que o poeta maior é
Maiakovski.
Mais tarde eu li
Maiakovski, grande poeta, mas não deixei atrás
dele os meus poetas amados. Não deixei atrás de
Maiakovski os meus poeta da juventude.
Eu me lembro, depois
de formada, das minhas incursões, das minhas viagens
pelo interior do estado de São Paulo. Eu era uma escritora.
Realmente o meu sonho. Eu já disse que sou sonhadora.
Meu sonho era ajudar o povo que eu via, o povo que eu amo tanto,
meu povo, minha gente. Eu tenho paixão pelo meu povo.
Esse povo de Renato Russo. Eu fiquei sabendo que esse compositor,
morreu jovem, Renato Russo é de Brasília. Olha,
que extraordinário! Renato Russo disse essa frase deslumbrante:
"O povo brasileiro é alegre, mas não é
feliz". Que bonito isto: "É alegre, mas não
é feliz".
Veio ao Brasil o
cineasta italiano Zefirelli. Esteve nos iates, nas ilhas deslumbrantes,
no Copacabana Palace. Voltou à Itália e lhe perguntaram:
— O que você
achou do Brasil?
— É
um país riquíssimo e felicíssimo.
É justamente
o turista, o turista que vem, vê as mulheres lindas, as
garotas de Ipanema... Não sabem da nossa realidade.
Renato Russo sabia.
"O povo brasileiro é alegre, mas não é
feliz".
Vocês vêem
que eu vou e volto, mas se eu não voltar, meu querido
amigo Jorge Couto, aqui a meu lado, do amado Instituto Camões
de Portugal, vai me puxar pela manga.
Eu ia pelas cidades
no interior fazendo o quê? Pregando isto: o dia em que
o Brasil tiver mais escolas e creches ele terá menos
hospitais. Eu vou repetir. o dia em que o Brasil tiver mais
escolas e creches ele terá menos hospitais. E agora nesta
fase tão terrível que estamos vivendo, numa fase
de medo, de tamanha aflição e ansiedade, eu acrescentaria:
o dia em que o Brasil tiver mais escolas e creches ele terá
menos hospitais e menos prisões — a violência.
Vocês vêem
que há uma harmonia. Eu vou chamar a atenção.
Na homenagem que prestei ao padre Antônio Vieira, aquele
pregador e educador que tentou, tentou com todas as forças...
foi preso, foi agredido. Os próprios jesuítas
foram contra ele. São coisas da natureza humana, que
é tão difícil e complicada. Não
vou tentar explicar agora, porque ninguém explica. É
inexplicável. O padre Antônio Vieira, educador
e missionário, .saía com aquela cruz aqui, a sotaina,
de peito aberto. Não foi canonizado nem será.
Ele não pode ser canonizado, um subversivo. Eu estou
usando agora uma expressão tão comum no período
da ditadura militar. Subversivo! Padre Antônio Vieira
foi nosso primeiro subversivo. Lindo! Desgrenhado, velho, morreu
lutando, como educador e pregador.
O tempo é
curto e eu preciso terminar. Eu queria apenas dizer a importância
do latim na nossa língua. Eu me apaixonei por latim.
Eu me apaixonei pela língua latina porque eu percebi,
então, a nossa raiz, a nossa força. Justamente
padre Antônio Vieira com a sua fides et ratio, com a sua
fé e a sua razão, lutava por um povo.
Deixem-me fazer esse
parêntese. Um dia eu estava na Alemanha, e um alemão,
naturalmente ignorante das nossas coisas, da nossa literatura,
disse: "Vocês, escritores brasileiros, estão
muito alienados". Ousou dizer isto. "Vocês estão
vivendo num país tão difícil e vocês
não escrevem sobre essas dificuldades". Aí,
eu pedi a palavra! Eu pedi a palavra e disse: Meu senhor, mostra
isso que o senhor não conhece a literatura brasileira.
Evidentemente a literatura brasileira trata, sim. da nossa realidade!
Eu não faço outra coisa do que, nos meus contos
e romances, tratar das coisas do meu país como testemunha
e participante que eu sou desta sociedade e deste tempo. Eu
tenho delatado tudo, como meus colegas escritores também
têm delatado. Porém, evidentemente, não
vamos fazer isso de uma forma aberta, senão não
seríamos lidos. Nós não seríamos
lidos! Nós temos que mascarar as coisas, pelos caminhos.
Tenho um conto chamado
Seminário dos Ratos. Nesse conto eu faço uma delação,
uma delação das autoridades que ficam sempre dizendo:
"A coisa está sob controle". Não está!
Não está! Eu estava num seminário anti-raticida
e havia ratos demais em São Paulo. Havia tanto rato que
alguém disse: "Eu estou protestando porque disseram
que para cada paulista há cinco ratos. Eu tenho só
quatro. Eu estou exigindo o quinto".
Em determinado instante
foi engraçadíssimo, porque o presidente da mesa
do seminário disse: "A situação está
sob controle". Naquela hora um rato atravessou o palco.
Eu achei uma maravilha aquilo. Aí eu escrevi Seminário
dos Ratos. Nesse meu conto, os ratos acabam comendo, devorando,
acabam com todos no seminário e se instalam na sessão,
os ratos! O único que conseguiu fugir daquele horror
que os ratos instalaram, caindo como nuvens, despejados de todos
os buracos, foi o que entrou na geladeira. Mas bastou ele botar
o dedo fora da geladeira e um rato mordeu o dedo dele. Esse,
quando olhou para trás, viu o casarão onde se
realizava o seminário anti-raticida todo iluminado: os
ratos estavam instalados no poder.
Esses apólogos
todos, essas metáfora, tudo isso que a gente escreve
e faz é com um sentido. Cego é aquele que não
quer ver. É impossível você explicar. Foi
isso o que eu disse para o tal do alemão arrogante. E
ele disse: "Ah, mas as crianças estão morrendo
no Brasil". E eu disse: Esse é um mal que no mundo
inteiro, meu senhor, o senhor sabe que existe. Nós temos,
sim, discriminação, mas ninguém pode nos
acusar. 'Atire a primeira pedra', conforme dizia Jesus Cristo
em relação à adultera. Ninguém pode
atirar a primeira pedra. O senhor, então, está
enganado. Eu peço desculpas, mas o senhor está
enganado, porque o escritor brasileiro está, sim, dentro
da sua realidade, dentro da sua sociedade e do seu tempo.
Voltando à
língua portuguesa. Hoje, por exemplo, tantas vezes, e
ontem também, nesses dias todos, eu ouvi tanto a expressão
que Eça de Queirós dizia em relação
ao português aqui falado: " O brasileiro usa açúcar
no português". Eu diria "sal". (Risos.)
Com todo respeito por Eça de Queirós, escritor
da minha maior admiração, mas é sal o que
nós pomos. E isso está certo, porque com esse
sal, pondo de lado qualquer idiotice de modéstia, talvez
estejamos acrescentando, enriquecendo a língua primeira,
a língua mater, a nossa verdadeira língua, que
é o português. Eu repito sempre isso: É
o português, sim. Escrevemos o português, mas o
estilo é o estilo brasileiro. É o nosso estilo
que pomos.
Eu me lembro de que
há muito tempo foi publicado um romance meu — faz
uns duzentos anos; tudo na minha vida faz duzentos anos —
em Portugal: Ciranda de Pedra. E o editor disse bem: "Eu
vou fazer o seguinte: eu vou adequar, vou fazer com que o seu
livro, que tem expressões que talvez escapem aos portugueses,
entre na língua portuguesa escrita e falada em Portugal".
Quando fui ler o meu livro, ele ficou outra coisa: não
era nem de uma portuguesa nem de uma brasileira; não
era nada. Não era nada, justamente porque é com
o estilo, com este estilo nosso que talvez possamos enriquecer
essa língua amada. É o estilo, é uma riqueza!
E aí entramos
na literatura adiante. Vamos pular os parnasianos, aqueles poetas
bem comportados que vieram depois dos românticos, daquela
Escola de Morrer Cedo, descabelados todos, uns bêbados,
tuberculosos outros. Gonçalves Dias! Este era indianista.
Tenho paixão por Gonçalves Dias. Ele, por exemplo,
era mais comportadão, fazia parte da escola romântica.
Mas os outros eram todos descabelados, viviam em correrrias,
em serenatas pelos cemitérios, com aquelas capas pretas,
evidentemente uma influência byroniana. Byron, Byron!
A diferença é que Byron tomava seus vinhos, suas
bebidas deslumbrantes e tal em taças. Mandou fazer uma
taça com um crânio humano e o pé da taça
era de ouro. Coisa linda! Agora os nossos... Eu gosto de um
verso de Álvares de Azevedo: "Escravo, enche essa
taça". Perdão. Álvares de Azevedo
bebia só leite. Inclusive Mário de Andrade diz
que ele morreu...
Acabou o tempo. Álvares
de Azevedo morreu virgem, segundo Mário de Andrade. Ele
falava tanto em mulheres, mas quem as teve todas foi Castro
Alves. Ele falava tanto em bebida e quem bebeu tudo foi o Fagundes
Varela. Fagundes Varela, sim, podia dizer: "Escravo., enche
essa taça". Então, dá idéia
de ser aquela coisa! Não era. A taça era um copo
vagabundo de cachaça, de alumínio em que ele bebia:
Escravo, enche essa taça!
Em seguida à
escola romântica, a escola parnasiana, escola bem comportada,
que era uma espécie de resposta aos descabelados, aos
sem-gravata e aos sem-colete da escola anterior, e depois a
famosa Semana de 22, a revolução modernista. E
aí, fortalecendo a idéia que acabei de expor agora
sobre o enriquecimento da língua, Mário de Andrade
— e eu recomendo pelo menos um livro de Mário de
Andrade, porque ninguém mais tem tempo de ler. Macunaíma,
onde Mário de Andrade tentou e conseguiu fazer isto,
no estilo dele — fez uma espécie de revolução,
a revolução modernista, em relação
à língua portuguesa. Tudo isso é enriquecimento.
Nós não estamos deteriorando a língua,
não! Nós não a estamos empobrecendo. Ao
contrário, nós a estamos enriquecendo! São
idéias, são presentes que o Brasil dá à
língua materna na sua pureza de Camões, Fernando
Pessoa, padre Antônio Vieira.
Não há
tempo! Imaginem, meu tema é imenso: "Língua
e Literatura". Rapidamente estou dando o que eu posso.
Oswald de Andrade também tentou fazer a mesma coisa.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, coisa
deslumbrante! Ele trouxe lá dos confins de Minas todo
um vocabulário estranho, aparentemente inventado. Não
é invenção! As raízes estão
lá. A gente procurando, as raízes estão
lá. É a riqueza, é o que nós podemos
dar à língua que nós amamos, à mulher
amada! É o homem tentando engastar na coroa do seu amor
mais uma pedra, mais um enfeite para abrilhantar a língua
nativa.
Bem, vamos terminar.
Não quero nem ler esse bilhete que me entregaram passando
um pito. Eu queria terminar esse arrebanhado que eu fiz dizendo
apenas o seguinte. Um dia volto aqui para falar sobre os meus
amores, esses amores. Um dia eu ainda volto, eu prometo. Mas
eu queria terminar com um poeta: Carlos Drummond de Andrade.
Antes, claro! Oh,
meu Deus! Machado de Assis. Ai, aí, aí! O Niskier
disse: "Eu fiz duzentas mil conferências sobre Dom
Casmurro. Traiu, não traiu. Eu lá sei se traiu.
Não interessa! A dúvida em relação
à traição de Capitu, justamente aí
está a beleza, o esplendor, o mistério de Dom
Casmurro. Por exemplo, Madame Bovary, de Flaubert, dizia "Madame
Bovary c'est moi" e tal. Madame Bovary era adúltera,
e está acabado. Ela ia cavalgando para casa do amante,
tudo bem, não tinha mistério nenhum. Capitu, não.
Ai, que bonitinha! Ela escondia. É a mulher velada. É
o mistério que eu amo na literatura. Capitu, justamente,
o que alimenta esse livro que atravessa o tempo. Daqui a cem,
duzentos anos estarão ainda perguntando: "Mas ela
traiu Bentinho?" Ora, traiu ou não traiu, o que
interessa? Não interessa nada!
Eu escrevi com Paulo
Emílio Salles Gomes um roteiro para cinema chamado Capitu.
E num determinado momento, Paulo Emílio me disse: "Ó
Cuco — ele me chamava de Cuco —, "você
está tomando partido do Betinho. Você está
ficando com a cara do Bentinho. Agora seu nome é Cuco
Bentinho". No dia seguinte eu disse:
— Não,
eu não sou mais Cuco Bentinho.
— Por quê?
— Porque eu
desconfio. Ela não é aquela santa, não,
Paulo Emílio. Ela traiu. E o filho era do amante.
— Mudou tudo!
— Mudou tudo.
Então ele
disse:
— Pára
de ler esse livro. Não o leia mais, tá entendendo?
Porque você não tem nada com isso. Você tem
é que manter o mistério, que esse mistério
é a graça, é o sal — olha o sal!
— do livro de Machado de Assis.
Carlos Drummond de
Andrade... Rapidamente vou encerrando, mas não posso
deixar de falar nesse poeta deslumbrante. Escola de Morrer Cedo!
Não é lindo? Todos morriam jovens. Lindo! Escola
de Morrer Cedo! Carlos Drummond de Andrade em poucos versos
disse justamente o que eu disse no vídeo projetado hoje.
São versos que dizem respeito à língua
portuguesa, esta língua que amamos tanto. Diz o poeta:
Penetra surdamente
no reino das palavras.
Lá estão
os poemas que esperam ser descritos.
Estão paralisados,
mas não há desespero,
há calma e
frescura na superfície intacta.
Ei-los sós
e mudos, em estado de dicionário.
Dicionário,
dicionário! Eu também tenho paixão por
dicionário. Vocês deviam se apaixonar, vocês
futuros escritores, poetas, prosadores. Dicionário! É
uma beleza o dicionário. Às vezes tenho dúvida
em relação a uma palavra e vou buscar... Eu sou
humilde, humilde e paciente. A paciência e a humildade
são duas virtudes do escritor. Paciência e humildade!
Então eu vou ao dicionário e vejo. Será
que essa palavra está boa? De repente eu encontro uma
terceira ou uma quarta expressão que me agrada mais.
Então eu corto aquela e a ponho de lado.
E termina o poeta
— e isto é lindo!:
Chega mais perto
e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas
sob a face neutra
e te pergunta, sem
interesse pela resposta,
pobre ou terrível,
que lhe deres:
Trouxeste a chave?
É uma beleza!
É a palavra perguntando: trouxeste a a chave? Esta chave
eu espero que vocês tenham guardada no coração
e na razão. O escritor fides et ratio. A razão
e coração. A razão apertando, controlando,
fiscalizando o texto. O texto, a razão — para não
dizer besteira. Mas o amor, a emoção cavalgando
a palavra.
Eu queira que vocês
tivessem essa chave ou, se pudesse, daria uma a cada um de vocês,
professores, estudantes, não estudantes, com idade mais
avançada, ou não. Eu queria que vocês pensassem
nessa chave e pensassem nesse verso com o qual eu quero encerrar
esse depoimentos tão desalinhavado, mas tão sincero.
Vejam! Comecei com padre Antônio Vieira e termino com
Camões. Este é um verso de Camões, que
eu amo tanto e que justifica muitas vezes a minha vida, minha
própria vida no seu cotidiano e no seu ofício,
que é o ofício de escrever:
Eu estou em paz com
a minha guerra. Eu estou em paz com a minha guerra. Repitam
isso para vocês mesmos, no fundo do coração:
Eu estou em paz com a minha guerra. E vocês farão
esta guerra e levarão esta guerra até o fim.
Muito obrigada.