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Quando ouvem a palavra saudade são muitos os que
pensam: - Ah sim, a saudade, a palavra que não
se pode traduzir e que identifica os portugueses. Mas
a saudade não é uma palavra, não é
o bilhete de identidade dos portugueses; a saudade não
se pode perceber nem definir, mas apenas viver, experienciar.
A saudade expressa-se em sentimentos, música, poemas,
cantos mas, certamente, não é com palavras
que a podemos traduzir. Antes de ser pensada a suadade foi
cantada considera Eduardo
Lourenço no seu
Labirinto da Saudade.
São tantos
os que já procuraram definir a saudade como tantas
são as hipóteses que colocaram para descrevê-la,
mas a melhor maneira de compreendê-la é
ir a Portugal, misturar-se com os portugueses e mergulhar
na cultura lusitana.
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Tal como o filho que apresenta,
simultaneamente, características da mãe e do pai,
assim a saudade é, igualmente, uma mistura de muitos sentimentos:
melancolia, nostalgia, monotonia, tédio, esperança,
desespero, tristeza, conforto, etc. Alegrar-se de sofrer, sofrer
por se sentir alegre…
O conceito de saudade
tem o seu locus nascendi algures em Marrocos, onde Dom
Sebastião morreu mas ninguém pôde testemunhar
a sua morte. Assim começou o movimento, quase seita, do sebastianismo,
na qual os discípulos crêem que Dom
Sebastião
não morreu na batalha e que voltará num dia de nevoeiro,
para que reine de novo a glória e a força do Portugal
das Descobertas. Por isso, a saudade portuguesa exprime, entre outras
coisas, o passado que foi e o futuro que nunca será. Um grande
paradoxo que vivem os portugueses face às esperanças
que têm no futuro de Portugal. Sonham com um destino maravilhoso,
idêntico à época das Descobertas e, ao mesmo
tempo, não fazem nada e não esperam nada porque não
crêem que Portugal possa brilhar de novo. Em vez de baixar
as expectativas que têm para o seu país, os portugueses
preferem viver no passado e deixar passar o presente. Trata-se de
um passado futuro! Escutemos Álvaro
de Campos na sua Tabacaria:
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso
querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos
do mundo.
A saudade
que sentem os portugueses pode eventualmente ser explicada geograficamente.
Com efeito, Portugal é um país pequeno cercado pelo
mar, quase como uma ilha, que predispõe os seus habitantes
a deixarem o continente. Não é por isso, supreendente
a vontade que os portugueses têm em se virarem para o mundo,
lançando-se ao mar. Os portugueses não gostam de limites
e, por isso, evitam-nos. Os portugueses gostam de desafios; ficam
tristes quando falham, mas ficariam ainda mais tristes se não
tivessem tentado. As descobertas portugueses situam-se, algures,
no passado porque as colónias já o foram. De todo
o lado onde os portugueses chegaram, deixam e trazem lembranças
da sua passagem. Da arquitectura à língua, de Marrocos
à China,
passando pela Índia,
Japão
e Timor.
Skala
de la Medina de Essaouira
Skala du port
de Essaouira
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Por exemplo,
quando fui a Morrocos, visitei a cidade de Essaouira
(antiga
Mogador), uma pequena cidade portuária, que, pela
sua situação geográfica foi acossada
por muitos visitantes indesejados. Mas a influência
mais marcante que nela se inscreve é a que os portuguses
deixaram. Muitos edifícios da cidade apresentam uma
arquitectura bem portuguesa, sobretudo a fortaleza.
E os portugueses mobilizaram o recurso mais poderoso para
as descobertas : o mar! Foi com o mar que chegaram até
mundos desconhecidos e também foi o mar que definiu
o reino do Portugal das Descobertas. Por isso, Portugal
foi cobiçado mais de uma vez pelos seus vizinhos
e saudosos inimigos de estimação. O mar também
foi, e ainda é, indispensável à alimentação
e prosperidade dos portugueses. No entanto, os portugueses
não conseguem pensar o mar sem saudade, porque o
mar venturoso também matou muitos deles: exploradores,
navegadores, pescadores, homens, mulheres, crianças,
esposos, esposas, filhos, filhas, mães, pais, avôs,
avós, irmãos, irmãs, tios, tias, primos,
primas, amigos, amigas, etc. O mar conferiu -e confere ainda
- poder aos portugueses mas também lhes mostra, às
vezes, que é maior do que eles. Esta dura lição
de humildade, esta impôtencia, esta imprevisibilidade
e este paradoxo do mar são componentes do grande
sentimento da saudade.
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Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessôa
Que fôsse misteriosamente minha.
-Álvaro
de Campos (Ode Marítima)
A saudade
também influenciou muito a cultura portuguesa inspirando
autores, pintores e músicos. A saudade lê-se, vê-se
e ouve-se. O
Fado representa o melhor exemplo da influência
da saudade no mundo da música, sobretudo quando cantado pela
voz fabulosa e autêntica da Amália
Rodrigues. Esta combinação única
e mágica de cantos e de guitarra portuguesa conquistou amadores
de música em todo o planeta, como os grandes exploratores
portugueses conquistaram o mar. Raras são as pessoas que
escapam às emoções quando ouvem o fado. A intensidade
dos sentimentos e a concentração da saudade, presentes
na língua internacional da música, comovem o público
e também nós podemos viver a saudade nem que seja
apenas por um instante.
Eu só entendo o fado
pla gente amargurada à noite a soluçar baixinho
que chega ao coração num tom magoado
tão frio como as neves do caminho
que chora uma saudade ou canta ansiedade
de quem tem por amor chorado
dirão que isto é fatal, é natural
mas é lisboeta
e isto é que é o fado
-
Amália
Rodrigues
(Fado
Lisboeta)
Na literatura,
podem-se encontrar muitos autores inspirados na saudade. Os seus
textos transpiram uma saudade tangível, como o cheiro a peixe
nos portos de Portugal. Encontramos esta atmosfera da saudade, de
cortar à faca, na poesia de Fernando
Pessoa e dos seus heterónimos, especialmente
em O
Marinheiro e
Tabacaria.
Só o mar das outras terras é que é belo.
Aquele
que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não
veremos nunca...
- Fernando Pessoa (O
Marinheiro)
Luís
de Camões é outro grande poeta português
que canta a saudade. A sua obra memorável é uma epopeia
moderna sobre as Grandes Explorações e Descobertas
dos Portugueses. Os dez cantos d'Os
Lusíadas - Lusíadas vem do
povo lusitano, os antepassados dos portugueses - não falam
somente das aventuras e dos eventos históricos que rodeiam
as explorações e as descobertas, mas também
falam dos sentimentos e da personalidade dos exploradores. Camões
dá uma alma a esta narração que revive debaixo
da sua pena com tinta de mar.
E também
as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
-Luís
de Camões
(Os Lusíadas, Canto
I)
Há
que referir ainda que a paixão dos portugueses por tudo o
que fazem, por tudo o que vivem também faz parte da saudade.
Têm uma paixão pela vida, pelo mar, pela música,
pela boa comida e bom vinho, pela língua
portuguesa, etc.
E também vivem o amor com paixão. Desejos impossíveis,
desejos que insuflam a vida nos apaixonados. Os desejos satisfeitos
cortam o prazer de sofrer, de ser privado. Um bom exemplo disso
é o suicídio de Mário de Sá-Carneiro
quando se apercebeu que a mulher que cobiçava, apesar de
prostituta, também o amava!
Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.
Mário
de Sá-Carneiro (Como eu não
possuo)
Por outro
lado, é também significativa a paixão dos portugueses
pela pátria. Muitos, vivem, agora, noutros paises, mas ninguém
deixou Portugal porque não gostava da cultura ou do país.
Alguns deixaram Portugal com a esperança de uma vida melhor,
para si e para os filhos. Mas, sobretudo, os portugueses saiam de
Portugal para ter a oportunidade de ter saudades da pátria
e da cultura lusitana! Para eles, ter saudades é um prazer
e este prazer quase sádico representa um outro paradoxo do
povo português. Todos os portugueses que encontrei no Quebeque
têm orgulho em ser portugueses e não renegam as raízes
portugueses. Pelo contrário, querem que os filhos nascidos
fora de Portugal, falem Português e conheçam a cultura
e a história dos seus antepassados. E, por isso, acho que
a cultura portuguesa será sempre bem viva e bem conhecida.
Amor
da Pátria
Vereis amor da pátria, não movido
De prêmio vil, mas alto e quase eterno:
Que não é prêmio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor supremo,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.
Luís de Camões (Os
Lusíadas, Canto I)
Há
que acrescentar ainda: os portugueses são patriotas mas também
muito pacifistas (brandos costumes oblige). Gostam das
cultura portuguesa e querem que seja conhecida em todo o lado, mas
não a impões, defendem ou promovem, como outros povos
que conhecemos muito bem. Não querem converter todos em portugueses,
mas apenas difundir a cultura e a língua portuguesa através
do mundo.
Em conclusão, os portugueses não têm a tecnologia
dos japoneses, a população dos chineses, o rigor dos
alemães, a pontualidade dos suíços, a siesta
dos espanhois, os queijos dos franceses, o Vaticano dos italianos,
a estupidez dos americanos (graças a Deus!), mas têm
a saudade. A bem dizer, não têm a saudade mas são
a saudade: na cultura, na língua, na cozinha, na música,
na literatura, no coração, na alma. E para todo o
lado para onde vão, trazem com eles esta saudade e transmitem
o amor de Portugal aos que encontram no caminho.
Para acabar, deixo aqui um poema meu, cuja inspiração
me foi aparecendo, no decorrer da realização deste
trabalho sobre a saudade. É a minha interpretação
desse sentimento bem português, que apenas a arte pode expressar
convenientemente...
Saudade
Uma lágrima de tinta
Que toca uma guitarra
Uma lágrima de tristeza
Uma lágrima de alegria
Uma lágrima de melancolia
Uma lágrima de euforia :
Uma melodia única
Salgada como o mar
Que faz voltar os navios
Como os corações vazios
Fado tinto de azul
Como os olhos da musa
Uma melodia única
Um sentimento português
Uma identidade sem idade
A saudade sem idade
Referências :
LOURENÇO
Eduardo (1997), Mythologie de la Saudade. Série
Lusitane, Editions Chandeigne, 206 p.
DE CAMPOS
Álvaro (1997), Ode Marítima; Ode Triunfal; Opiário;
Tabacaria. Lisboa, Contexto, 74p., ISBN 972-26-1364-2
PESSOA
Fernando (1952), Poemas Dramáticos. Colecção
poesia, Edições Ática.
DE CAMÕES
Luís (1572), Os Lusíadas. Edição
do Instituto Camões, www.instituto-camoes.pt/
DE SÁ-CARNEIRO
Mário (1914) Dispersão. Lisboa
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