Não vou dizer que minha pátria é a língua portuguesa. Primeiro, porque esta frase, quase sempre divorciada do contexto poético em que Pessoa, através do seu heterónimo Bernardo Soares, a disse, se transformou em discurso oficial da lusofonia. E eu não gosto de ver a cultura convertida em discurso oficial. Segundo, porque estou de acordo com a desmistificação exemplar feita por Eduardo Lourenço: Sem o confessarem, ou, acaso, terem bem consciência disso - os decididos apóstolos, ou antes, crentes na existência de um espaço-língua suporte de um espaço-cultura que permitisse dar um conteúdo à ideia de lusofonia - para além da constatação empírica de uma expressão de matriz lusíada - imaginam assim aceder a um Quinto Império mais acessível que o Império de Cristo pregado por Vieira ou que o Império do sonho feito com saudade do Império perdido, à Pessoa. Prefiro falar de uma língua e diferentes culturas, para utilizar a expressão com que o escritor Álvaro Guerra, então embaixador na Suécia, baptizou um conjunto de colóquios realizados naquele país sobre este mesmo tema. Uma língua e diferentes culturas. Uma língua que é, de certo modo, inseparável de um processo histórico de criação de nações. A começar por Portugal. Não é culturalmente exacto que Portugal tenha começado na batalha de S. Mamede, nessa primeira tarde portuguesa, belíssima expressão que podia ser um verso, cujo autor por sinal é Alexandre Herculano e não, como já foi escrito, o Professor José Matoso. Antes de ser Estado, Portugal foi trova, contar de amigo, flor de verde pinho, menina e moça de Bernardim. E também o sol é grande e o comigo me desavim, de Sá de Miranda. E sobretudo Camões, a lírica e Os Lusíadas, esse poema fundador, que é um verdadeiro acto de soberania espiritual. Como costuma lembrar Mário Cesariny, Camões escreveu o português tal como hoje o falamos. Por isso ele não é só, até certo ponto, o fundador de uma identidade cultural, é também o fundador da língua portuguesa que hoje escrevemos e falamos. O que talvez tenha levado Amílcar Cabral e, mais tarde Samora Machel a reivindicarem Camões e a dizerem claramente dito: Camões também é nosso. Antes de ser Estado-Nação, Portugal foi língua e foi poema. Essa é a verdade cultural ou, se preferirem, a verdade poética e mágica da criação de Portugal. As nações todas são mistérios, dizia Pessoa. Este é talvez o mistério de Portugal: a língua. Mas também não
se pode esquecer que Amílcar Cabral, o mais carismático
dos dirigentes africanos das antigas colónias portuguesas, definiu
a luta de libertação como um acto de cultura. E na verdade,
antes do início da luta armada em Angola, Guiné e Moçambique,
houve manifestações culturais que podem ser consideradas
como fundadoras. É o caso da revista Mensagem, que é uma
das primeiras expressões da angolanidade. Antes das grandes proclamações
políticas, Angola já tinha de certo modo nascido da criação
literária de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mário Pinto
de Andrade, António Jacinto, Luandino Vieira e outros. Como Cabo
Verde estava na prosa e na poesia de Baltazar Lopes, Moçambique
nos poemas de José Craveirinha, S. Tomé na escrita de Francisco
José Tenreiro e de Alda Espírito Santo. Acontece que, em
cada um destes países, a afirmação das respectivas
identidades culturais, como a própria proclamação
das respectivas independências, foi feita em português. A
língua da opressão
colonial transformou-se em língua de libertação nacional.
E hoje em língua oficial dos novos Estados africanos, assim com
de Timor-Leste. Não por qualquer imposição ou influência
neocolonialista, mas por livre escolha de cada um destes novos Estados
independentes. E por isso, como diz Eduardo Lourenço, esse apelo à lusofonia só tem verdadeiro sentido e, sobretudo, efeitos práticos, se nos vier de fora. Quer dizer, se for uma palavra do outro, que pode falar um português como nós, mas que não tem a mesma memória cultural e não condivide connosco obrigatoriamente da mesma mitologia, porventura dos mesmos valores. Ele tornou-se um outro até pela recusa, metamorfose, ou nova interpretação da herança cultural que ia outrora, na língua portuguesa. Não repetirei a frase de Bernardo Soares. Prefiro falar da necessidade de uma estratégia da língua. Para os países que adoptaram o português, devia ser não só uma prioridade cultural mas política. Uma tal estratégia nada tem de suspeito. E aqui me separo do que em tempos afirmou Tabucchi. Assim como a unidade da língua fez a unidade da Brasil, também a difusão da língua oficial é condição de unidade dos novos povos africanos. Não é interesse nosso, é deles. Mas não só por isso é necessária uma estratégia da língua: a globalização existe, assim como a hegemonia cultural, política, linguística e mediática anglo-americana. Nos XI encontros de Petrarca, realizados em 1996 em Montpellier, por France-Culture e Le Monde, manifestou-se o receio de que a diversidade de línguas e de culturas seja enfraquecida por uma uniformidade de homogenização de que os EUA, como potência dominante, seriam os principais beneficiários. A economia única traz a lógica do pensamento único, da cultura única, da língua única. O português é língua de boa prosa e boa poesia. Mas não de economia, nem de computador, nem de supremacia tecnológica, tecnocrática ou mediática. Não é adoptando o inglês como língua dominante que podemos assegurar a personalidade cultural dos nossos povos. Abdicar da língua é abdicar da alma. Por isso é preciso
fazer da língua portuguesa não apenas uma escrita ou uma
fala de resistência e sobrevivência, não apenas um
meio de comunicação entre nós, mas uma ponte de nós
para os outros, um instrumento de comunicação, uma língua
de futuro na cena internacional. Ora isto nada tem a ver com lusofonia
suspeita. Como retórica neo-sebástica, a lusofonia não
tem sentido. Mas já o tem como estratégia de afirmação
e libertação perante os novos imperialismos. Concordo com Steiner contra Chomsky: Cada língua é um acto de liberdade que permite a sobrevivência do homem. A multiplicidade e a complexidade das línguas é a única riqueza para os povos despojados de tudo o mais. Com cada língua que morre apaga-se a possibilidade ontológica de ser. Cada língua é algo que tem a ver com aquilo a que Blake chamou o "sagrado do particular". Uma língua e diferentes culturas. É essa a nossa riqueza. Somos diferentes na mesma língua. Uma língua em que as vogais não têm todas a mesma cor. O A de Craveirinha não tem a cor do A de Sophia, o E de João Cabral de Melo Neto não é o de Ramos Rosa, o O dos angolanos Rui Duarte de Carvalho e Manuel Rui não é o Cursino Fortes nem o de Eugénio de Andrade. Não falo sequer da cor das vogais portuguesas a certas horas na Foz de Arelho, que é a minha praia. Direi apenas que nenhuma é branca. E em todas, desde Camões até Camilo Pessanha, há sempre um tom de verde que é o tom do Atlântico. Para já não entrar nas consoantes que, em Portugal, como se sabe, assobiam, na África cantam e no Brasil dançam. Temos um língua com vogais multicolores e consoantes sibilantes, ondeantes e até serpenteantes. Uma língua onde há um música de fundo comum, o mar. O mar dos nossos encontros, desencontros e reencontros. Mar de uma língua e diferentes culturas. Viagem de nós para nós. Viagem de nós para o mundo.
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