Harold Pinter
não foi a Estocolmo receber o prémio A carta que o Nobel da Literatura escreveu ao júri Tradução de Jorge Silva Melo In Expresso 16 Dezembro 2005 http://online.expresso.clix.pt/1pagina/artigo.asp?id=24755970 |
Em 1958 escrevi: «não há uma grande
diferença entre aquilo que é real e aquilo que é irreal, nem entre aquilo
que é verdade e aquilo que é falso. Uma coisa pode não ser nem verdadeira
nem falsa. Pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa.» Acho que esta afirmação ainda faz sentido
e se aplica ainda à exploração de realidade através da arte. Por isso,
enquanto escritor defendo esta afirmação. Por isso o defendo enquanto
artista. Mas enquanto cidadão não, enquanto cidadão tenho de perguntar:
o que é que é verdade? O que é que é falso?" No teatro, a verdade esquiva-se sempre.
Quase nunca a encontramos, mas é forçoso andar em sua busca. A busca
é claramente aquilo que guia os nossos esforços. A procura é o nosso
trabalho. É muitas vezes no escuro que tropeçamos na verdade, esbarramos
com ela, ou vislumbramos uma imagem ou uma forma que parece corresponder
à verdade, mas muitas vezes também acontece não sabermos que o fizemos.
Mas a verdade mesmo é que não há nunca uma só verdade que possamos encontrar
na arte do teatro. Há muitas. Estas verdades desafiam-se umas às outras,
repercutem, reflectem-se, ignoram-se, espicaçam-se, são insensíveis
umas às outras. Às vezes, pensamos que temos a verdade de um momento
na mão, e ela escapa-se-nos por entre os dedos e perde-se. Muitas vezes me perguntam como nascem
as minhas peças. Não sei dizer. Nem sei resumir nenhuma das minhas peças.
Não sei descrever nenhuma. Só sei dizer: foi isto o que aconteceu, foi
isto o que disseram, foi isto o que fizeram. Muitas das peças começaram com uma frase,
uma palavra ou uma imagem. À palavra junta-se quase logo uma imagem.
Vou dar o exemplo de duas frases que me vieram à cabeça sei lá de onde
e a que logo se seguiu uma imagem, a que logo se seguiu eu. As peças são O Regresso A Casa e
Há Tanto Tempo. A primeira frase de O Regresso A Casa é:
«Onde é que puseste a tesoura?». A primeira frase de Há Tanto Tempo
é «Escuro». Em nenhum dos casos, eu não tinha mais
informações. No primeiro, era evidente que alguém
estaria à procura de uma tesoura e estava a perguntar o que lhe fizera
alguém que suspeita tê-la roubado. Mas eu, de certa maneira, sabia que
a pessoa a quem a pergunta era feira se estava nas tintas para a tesoura
ou mesmo para quem lhe fazia a pergunta. 'Escuro' achei que era a descrição do
cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e era a resposta a alguma
pergunta. Em qualquer dos casos, senti-me obrigado a prosseguir. Isto
passou-se visualmente, uma entrada lenta na luz, da sombra à luz. Quando começo uma peça, chamo sempre
A, B ou C às minhas personagens. Na peça que viria a ser O Regresso
A Casa, vi um homem entrar numa sala e fazer uma pergunta a um homem
mais novo que estaria sentado num feio sofá a ler um jornal de apostas
de cavalos. Tinha a ideia que A seria um pai e B um filho, mas não tinha
provas. Isso, no entanto, seria confirmado daí a nada quando B ( que
viria a ser Lenny) diz a A ( que viria a ser Max), «O pai importa-se
que eu mude de assunto? Queria fazer-lhe uma pergunta. Aquele jantar
que nós comemos, como é que se chamava a comida? Qual é o nome que o
pai dá àquilo? Porque é que não compra um cão? É um cozinheiro de cães.
A sério. O pai acha que cozinha para cães.» Ou seja, a partir do momento em que
B chama «Pai» a A, pareceu-me aceitável que fossem pai e filho. Também
A é claramente o cozinheiro e a sua arte não é muito apreciada. Quererá
isto dizer que não há mãe? Não sabia. Mas, tal como para mim mesmo me
disse, os nossos princípios não sabem dos nossos desenlaces. 'Escuro.' Uma janela grande. Um céu
nocturno. Um homem, A ( que viria a ser Deeley), e uma mulher, B (que
viria a ser Kate), sentados a beber. 'Gorda ou magra?' pergunta o homem.
De quem é que estariam a falar? E nessa altura vejo, de pé, junto a
uma janela, uma mulher, C (que viria a ser Anna), iluminada de outra
maneira, de costas para eles, cabelo escuro. É um momento estranho, o momento de
criar personagens que nunca existiram até essa altura. Aquilo que se
segue é incerto, inseguro, ás vezes alucinante - e às vezes mesmo uma
avalanche que não pára. A posição do autor é estranha. Num certo sentido,
as personagens não o querem por lá. As personagens resistem, não são
de convívio fácil, são de difícil definição. De certa forma, estamos
num jogo sem fim com elas, gato e rato, à cabra-cega, às escondidas.
E acabamos por ter nas nossas mãos pessoas de carne e osso, pessoas
com desejos e com sensibilidade própria, feitas de elementos que já
não conseguimos alterar, manipular ou distorcer. É assim que a linguagem na arte continua
a ser uma transacção extremamente ambígua, uma areia movediça, um trampolim,
um lago gelado que a qualquer momento pode ceder ao nosso peso, ao peso
do autor. Mas, como disse, a busca da verdade
não pode parar. Não pode ser adiada, não pode ser suspensa. Tem de ser
afrontada, e logo. O teatro político tem toda uma outra
série de problemas. Tem de se evitar os sermões a todo o custo. A objectividade
é essencial. As personagens têm de poder respirar o seu próprio ar.
O autor não pode confiná-las nem obrigá-las a satisfazer-lhe o seu gosto
ou as preferências e tendências que são as suas. Tem de estar preparado
para as observar sob uma grande variedade de ângulos, um leque de perspectivas
diversas e sem preconceitos, apanhá-las de surpresa, talvez, de vez
em quando, mas deixando-lhes a liberdade de seguirem o seu próprio caminho.
Nem sempre funciona. E a sátira política, é evidente, não obedece a
nenhum destes preceitos, está exactamente no lado oposto, e essa a sua
função principal. Na minha peça Feliz Aniversário,
creio ter lançado um grande leque de pistas que nos guiam por uma
densa floresta de possibilidades, até me concentrar, no final, num acto
de submissão. Língua de Montanha
não funciona numa escala tão aberta. É brutal, breve e feia. Mas os soldados
da peça conseguem divertir-se com a situação. As pessoas esquecem-se
que os torturadores se aborrecem facilmente. Precisam de gargalhadas
para manter o moral. Isto vimo-lo em Abu Ghraib em Bagdade. Língua
de Montanha dura só 20 minutos, mas podia prolongar-se, horas e
horas, com o mesmo padrão a repetir-se e repetir-se, hora após hora.
Cinza às Cinzas, por outro
lado, parece-me passar-se debaixo de água. Uma mulher que se afoga,
a mão dela que emerge das vagas, que cai fora do alcance da nossa vista,
tentando alcançar outras mãos, mas sem encontrar ninguém, nem por baixo
nem por cima da água, só sombras, reflexos. A mulher é uma silhueta
perdida numa paisagem que se afoga, uma mulher que não é capaz de escapar
ao trágico destino que parecia pertencer apenas aos outros. Mas tal como eles morreram, também ela
morrerá. A linguagem política, tal como é usada
pelos políticos, não se aventura por nenhum destes territórios, dado
que, na generalidade, os políticos, naquilo que deles podemos ver com
clareza, estão interessados não na verdade mas no poder e na manutenção
desse poder. Para manter esse poder, é fundamental que as pessoas continuem
ignorantes, que vivam na ignorância da verdade, e até da verdade das
suas próprias vidas. Aquilo que nos rodeia é uma vasta tapeçaria de
mentiras, sobre a qual nos vamos alimentando. Como qualquer um de nós sabe, a invasão
do Iraque foi justificada pelo facto de Saddam Hussein possuir um grande
arsenal de armas de destruição em massa, algumas das quais poderiam
ser activadas em 45 minutos, com efeito terrivelmente devastador. Garantiram
que era verdade. Não era verdade. Disseram-nos que o Iraque tinha ligações
com a Al Quaeda e partilhava a responsabilidade pelas atrocidades ocorridas
em Nova Iorque a 11 de Setembro de 2001. Garantiram que era verdade.
Não era verdade. Disseram-nos que o Iraque era uma ameaça para a segurança
mundial. Garantiram que era verdade. Não era verdade. A verdade é uma coisa inteiramente diferente.
A verdade tem a ver com o papel que os Estados Unidos julgam ter no
mundo e como escolhem encarná-lo. Mas antes de voltar ao presente, quero
ir atrás, até ao passado recente. Quero eu dizer à política externa
dos Estados Unidos desde a II Guerra Mundial. Acho que temos a obrigação
de analisar este período de forma rigorosa, embora limitada pelo tempo
de que aqui dispomos. Todos sabemos o que aconteceu na União
Soviética e em toda a Europa de Leste durante o período do pós-guerra:
a brutalidade sistemática, as atrocidades largamente difundidas, a brutal
irradicação do pensamento independente. E tudo isso foi amplamente documentado
e verificado. Mas eu defendo aqui que os crimes que
os Estados Unidos cometeram nesse mesmo período só superficialmente
foram retidos, quanto mais documentados, e é se alguém os reconheceu
como crimes. Creio que esta questão tem de ser colocada e que a verdade
tem uma relação evidente com o estado actual do mundo. Embora, até certo
ponto, condicionadas pela acção da União Soviética, as acções levadas
a cabo pelos Estados Unidos no mundo inteiro dão claramente a entender
que eles se tinham autorizado uma carta branca para fazer aquilo que
queriam. A invasão directa de um estado soberano
nunca foi, de facto, o método preferido da América. Na maior parte dos
casos, sempre preferiu aquilo que qualifica como «conflito de baixa
intensidade». «Conflito de baixa intensidade» quer dizer que há milhares
de pessoas que morrem mas mais devagar do que se se lhes atirasse uma
bomba para cima. Quer dizer que se lhes infecta o coração do país, que
se lhes injecta um tumor maligno e se fica a ver o crescimento da gangrena.
Quando o povo se rende - ou é espancado até à morte, o que é a mesma
coisa - e que os amigos, os militares e as grandes empresas, se sentam
comodamente no poder, avançam para frente das câmaras e dizem que a
democracia venceu. Isto foi um lugar comum recorrente na política externa
dos EU nos anos a que me refiro. A tragédia da Nicarágua é particularmente
significativa. Escolho-a aqui como exemplo claro da visão que a América
tem do seu papel no mundo, nessa altura como agora. No final dos anos 80, estive numa reunião
na Embaixada Americana em Londres. O Congresso dos EU ia decidir nessa
altura se iria dar mais dinheiro aos Contras na sua campanha contra
o estado da Nicarágua. Eu integrava uma delegação que representava a
Nicarágua mas o membro mais importante desta delegação era um Padre
John Metcalf. O chefe do campo americano era Raymond Seitz (nessa altura
numero dois da embaixada, mais tarde, embaixador ele próprio ). O Padre
Metcalf disse: "Tenho a meu cargo uma paróquia no norte da Nicarágua.
Os meus paroquianos construíram uma escola, um centro de saúde, um centro
cultural. Vivemos em paz. Há uns meses atrás uma força dos Contra atacou
a nossa paróquia. Destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro
cultural. Violaram enfermeiras e professoras, massacraram os médicos
da forma mais brutal. Actuaram como selvagens. Por favor, peça ao Governo
dos Estados Unidos que retire o apoio que dá a esta actividade terrorista."
Raymond Seitz tinha fama de ser um homem
particularmente inteligente, responsável e altamente sofisticado. Era
muito respeitado nos círculos diplomáticos. Ouviu, calou-se e depois
disse com alguma gravidade: "Padre", disse ele " deixe-me
eu dizer-lhe uma coisa. Numa guerra, as pessoas inocentes sofrem sempre."
Houve um silêncio glacial. Olhámo-lo nos olhos. Ele nem pestanejou.
As pessoas inocentes, realmente, sofrem
sempre. Até que, por fim, alguém disse: 'Mas
neste caso, as pessoas inocentes são vítimas de uma atrocidade sem nome
financiada pelo seu governo, e uma entre muitas. Se o Congresso conceder
mais dinheiro aos Contras, haverá mais atrocidades deste género Não
é assim? Não ficará o seu governo com a culpa de apoiar crimes de morte
e destruição de cidadãos de um estado soberano?' Seitz imperturbável. ' Não creio que
os factos referidos demonstrem a vossa asserção,' disse. Ao sairmos da Embaixada, um conselheiro
americano disse-me que ele apreciava o meu teatro. Não respondi. Devo lembrar-vos que nessa altura o
Presidente Reagan afirmou o seguinte: 'Os Contras são o equivalente
moral dos nossos Pais Fundadores.' Os EU apoiaram a brutal ditadura de
Somoza na Nicarágua por mais de 40 anos. O povo da Nicarágua, liderado
pelos Sandinistas, fez cair este regime em 1979, uma arrebatadora revolução
popular. Os Sandinistas não eram perfeitos. Tinham
a sua parte de arrogância e a sua filosofia política continha inúmeras
contradições. Mas eram inteligentes, racionais e civilizados. Queriam
instaurar uma sociedade decente, pluralista, estável. Aboliram a pena
de morte. Centenas de milhares de camponeses marginalizados pela miséria
viram renascer a esperança. Mais de 100.000 famílias tiveram direito
a terra. Foram construídas 2.000 escolas. Uma brilhante campanha de
alfabetização reduziu a iliteracia até menos de 7%. Foi criada a educação
gratuita e o serviço de saúde gratuito. A mortalidade infantil foi reduzida
de um terço. A poliomielite foi erradicada. Os EU acusaram estes feitos de subversão
marxista-leninista. De acordo com o governo dos EU, a Nicarágua estava
a dar um exemplo perigoso. Se continuasse a estabelecer normas elementares
de justiça social e económica, se continuasse a elevar o grau dos cuidados
de saúde e educação, se conseguisse atingir uma união social e um auto-respeito
nacional, os países limítrofes haveriam de levantar as mesmas perguntas
e fazer as mesmas coisas. Em El Salvador, havia, simultaneamente, uma
bizarra resistência ao statuo quo. Falei já de uma "tapeçaria de mentiras"
que nos envolve a todos. O Presidente Reagan qualificava a Nicarágua
como 'uma masmorra totalitária'. Isto acabou por ser aceite pelos média
- e certamente pelo governo britânico - como um comentário adequado.
Não havia, no entanto, traça de esquadrões da morte no governo sandinista.
Não havia traça de torturas. Não havia traça de brutalidade militar,
sistemática e oficial. Nenhum padre foi assassinado na Nicarágua. Havia
mesmo três padres no governo, dois Jesuítas e um missionário Maryknoll.
As masmorras totalitárias estavam mesmo ao lado, em El Salvador e na
Guatemala. Os EU tinham feito cair o governo democraticamente eleito
da Guatemala em 1954 e estima-se em mais de 200.000 o número de vitimas
das sucessivas ditaduras militares. Seis dos mais eminentes jesuítas do
mundo foram traiçoeiramente assassinados na Universidade de San Salvador
em 1989 por um batalhão do regimento Alcatl treinado em Fort Benning,
Georgia, EU. Aquele homem particularmente corajoso, o Arcebispo Romero
foi assassinado ao dizer missa. Estima-se em 75,000 o número de mortos..
Porque é que foram mortos? Foram mortos porque acreditaram que era possível
uma vida melhor e que se devia lutar por ela. Essa convicção fez com
que fossem acusados de ser comunistas. Morreram porque ousaram questionar
o status quo, o interminável horizonte de pobreza, doença, decadência
e opressão que foi o que tiveram como direitos ao nascer. Os Estados Unidos acabaram por fazer
cair o governo Sandinista . Demorou uns anos, encontrou uma resistência
considerável mas a perseguição económica sem tréguas e os 30.000 mortos
acabaram por fazer quebrar a determinação do povo da Nicarágua. Estavam
exaustos e a miséria regressara. Os casinos voltaram. A educação e a
saúde gratuitas acabaram. As grandes empresas voltaram, vingativas.
A "democracia" venceu- Mas esta "política" não diz
apenas respeito ao que se passa na América Central. Foi levada a cabo
em todo o mundo. Não tem fim. E é como se nunca tivesse acontecido.
Os Estados Unidos apoiaram e em muitos
casos estiveram na origem de todas as ditaduras militares da direita
no mundo desde o final da II Guerra Mundial.
Estou a falar da Indonésia, Grécia, Uruguay, Brazil, Paraguay, Haiti,
Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador, e, é claro, do Chile. O
horror que os EU fizeram abater sobre o Chile em 1973 não poderá nunca
ser expiado nem esquecido. Ocorreram centenas de milhares de mortes
nestes países. Mas ocorreram? E podem ser atribuídas à política externa
dos EU? A resposta é sim e que elas são da responsabilidade da política
externa dos EU. Mas nunca o saberíamos. Nunca nada aconteceu. Nada aconteceu.
Mesmo quando estava a acontecer, não aconteceu. Não tinha importância,
Não tinha interesse. Os crimes dos EU são sistemáticos, regulares, viciosos,
sem remorso mas poucos são os que falam deles. E a responsabilidade
é da América. Exerceu uma manipulação de poder mundial a um nível quase
cirúrgico ao mesmo tempo que se disfarçava em força do bem universal.
É uma hipnose brilhante, esperta, altamente conseguida. Afirmo-vos que os EU são sem sombra
de dúvida quem, neste momento, tem em cena o maior espectáculo do mundo.
Poderá parecer brutal, indiferente, desdenhoso e impiedoso mas é inegavelmente
muito esperto. Tal como um caixeiro viajante, trabalha por conta própria
e a mercadoria com mais saída é a auto-estima. É um vencedor. Ouçam
como os presidentes dos EU dizem na televisão " o povo americano",
como na frase " Digo ao povo americano que é tempo de rezar e de
defender os direitos do povo americano e peço ao povo americano que
confie no seu presidente na acção que vai iniciar em defesa do povo
americano. O estratagema é brilhante. A linguagem
é realmente usada para obscurecer o pensamento. A expressão "o
povo americano" comporta em si uma voluptuosa almofada que nos
dá confiança. Não é preciso pensar. Basta aconchegarmo-nos sobre a almofada.
Pode ser que a almofada esteja a sufocar a inteligência e as faculdades
críticas mas é tão confortável. Isto, é claro, não se aplica aos 40
milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza e dos 2 milhões
de homens e mulheres que estão presos no vasto gulag de prisões que
se estende ao longo dos EU. Os EU já não se preocupam com os conflitos
de baixa intensidade. Já não vêm qualquer interesse em dar provas de
reserva ou sequer de manhas. Atiram para cima da mesa as cartas sem
medo. Estão-se realmente nas tintas para as Nações Unidas, a lei internacional
ou as críticas, que consideram não ter qualquer poder ou importância.
E ainda levam atrás de si, à trela, o pequeno cordeirinho que é a patética
e submetida Grã Bretanha. O que aconteceu com a nossa sensibilidade
moral ? Alguma vez a tivemos? O que quer dizer esta expressão? Refere-se
a um termo pouco usado nestes dias - consciência? Uma consciência de
agir não apenas com os nossos próprios actos mas com a responsabilidade
partilhada nas acções dos outros? Já tudo isto morreu? Olhe-se para
a Baía de Guantanamo. Estão lá centenas de pessoas presas sem acusação,
há mais de três anos, sem representantes legais, tecnicamente em prisão
perpétua. Esta estrutura totalmente ilegítima é mantida à revelia da
Convenção de Genebra. E é tolerada ou vista como se não existisse por
aquilo a que se chama "a comunidade internacional". Este crime
escandaloso está a ser perpetrado por um país que se intitula "
defensor do mundo livre". Pensamos nos prisioneiros de Guantanamo?
O que dizem os média acerca deles? De vez em quando espreitam, dá uma
pequena nota na página 6. Foram confinados a uma terra de ninguém de
onde provavelmente nunca regressarão. Neste momento, há alguns que estão
em greve da fome, alimentados à força, e alguns são britânicos. Não
há delicadeza nesta alimentação forçada. Nem sedativos nem anestésicos.
Só um tubo enfiado pelo nariz e que vai até à garganta. Vomita-se sangue.
Isto é uma tortura. O que dizem os Negócios Estrangeiros britânicos
acerca disto? Nada. O que diz o primeiro ministro britânico? Nada. E
porque não? Porque os EU disseram: criticar a nossa acção em Guantanamo
é um acto hostil. Ou estão connosco ou contra nós. E, portanto, Blair
cala-se. A invasão do Iraque foi um acto de banditismo,
um acto de terrorismo de estado, demonstrando um total desprezo pela
noção de lei internacional. A invasão foi uma acção militar sustentada
por uma série de mentiras, enorme manipulação dos media e por conseguinte
do público; um acto que deveria consolidar o domínio militar e económico
da América no Médio Oriente disfarçado em ultima instância de libertação
- uma vez que todas as outras justificações ruíram. Uma formidável asserção
de força militar responsável pela morte e mutilação de milhares e milhares
de inocentes. Levámos tortura, bombas de fragmentação,
urânio empobrecido, matanças cometidas ao acaso, miséria, humilhação
e morte e chamamos a isso "levar ao Médio Oriente a liberdade e
a democracia". Quantas pessoas é preciso matar até
se ser qualificado como um assassino de massas e um criminoso de guerra?
Uma centena de milhar? Mais do que o necessário, julgaria eu. Por isso
creio que é justo que Bush e Blair sejam levados ao Tribunal Internacional
de Justiça Mas Bush foi esperto. Nunca ratificou o Tribunal Internacional.
Por isso, se alguma vez um soldado americano ou melhor ainda um político
alguma vez estiver no banco dos réus, Bush disse que enviaria os marine.
Mas Tony Blair ratificou o Tribunal e está assim sujeito a um processo.
Podemos dar a sua morada ao Tribunal, no caso de estarem interessados.
É o número 10 da Downing Street, London. Neste contexto, a morte não tem qualquer
importância. Quer Bush quer Blair conseguem muito bem passar ao seu
lado. Já pelo menos 100.000 Iraquianos foram mortos por bombas e mísseis
americanos - e antes de ter começado a revolta iraquiana. Essas pessoas
não são de tempo nenhum. As suas mortes não existem. Nada são. Nem sequer
são lembradas como mortas. " Não fazemos contagem de corpos",
disse o general americano Tommy Franks. Mal começou a invasão, surgiu na primeira
página dos jornais britânicos uma fotografia de Tony Blair dando um
beijo a um menino iraquiano. "Uma criança agradecida", dizia
a legenda. Dias depois havia uma história e uma fotografia, numa página
interior, de um outro menino de 4 anos sem braços. A família fora dizimada
por um míssil. Ele é o único sobrevivente. "Quando é que volto
a ter braços?", perguntava. E a história foi esquecida. È que Tony
Blair não estava com ele ao colo nem tinha ao colo nenhuma outra criança
mutilada, nem nenhum cadáver ensanguentado. O sangue é sujo. Suja a
camisa e a gravata e é preciso um discurso sincero na televisão. Os 2.000 mortos americanos são um embaraço.
São transportados para os seus túmulos durante a noite. Os funerais
fazem-se na maior discrição, em lugares seguros. Os mutilados apodrecem nas camas, alguns
para o resto das suas vidas. E assim mutilados e mortos apodrecem todos,
em diferentes espécies de túmulos. Eis uma passagem de um poema de Pablo
Neruda: E uma manhã tudo o que ardia Uma manhã as queimadas Levantaram-se da terra Devorando os seres humanos E deste então foi o fogo A pólvora desde então Foi o sangue. Bandidos com aviões e mouros Bandidos de aliança e duquesas Bandidos com monges negros que os benziam
Vieram pelos céus para matar crianças
E o sangue das crianças correu pelas
ruas Simplesmente, como o sangue das crianças.
Chacais que os chacais desprezariam
Pedras em que até os cardos secos cuspiriam
Víboras que as víboras abominariam Cara a cara contigo tenho visto o sangue
De Espanha levantar-se como uma maré
Que te arrasta numa vaga De orgulho e facas. Traiçoeiros generais: vede a minha casa morta, vede a Espanha quebrada: de cada casa corre metal fundente em vez de flores de cada fenda de Espanha surge a Espanha mas de cada criança morta levanta-se
uma espingarda com olhos mas de cada crime nascem balas que um dia hão-de encontrar o lugar dos vossos corações. E perguntam; porque não fala a sua poesia
De sonhos e plantas E dos grandes vulcões da sua terra natal.
Venham ver o sangue nas ruas. Venham ver O sangue nas ruas Venham ver o sangue Nas ruas! * Que fique bem claro que ao citar este
Neruda, não estou de modo algum a comparar a Espanha Republicana ao
Iraque de Saddam Hussein. Cito Neruda porque em mais nenhuma poesia
contemporânea consegui eu ler uma tão poderosa e visceral descrição
do que é um bombardeamento de civis. Disse antes que agora os EU já são totalmente
francos ao atirarem as cartas para a mesa. É assim mesmo. A sua política
oficial define-se como um "'full spectrum dominance'. ( domínio
total em todas as frentes). Os termos não são meus, são deles. E 'full
spectrum dominance' significa domínio da terra, mar, ar e espaço e de
todos os bens neles existentes. Os EU ocupam hoje 702 instalações militares
espalhada pelo mundo em 132 países, com a honrosa excepção da Suécia,
claro. Não sabemos como conseguiram chegar lá, mas que lá estão, lá
isso estão. Os EU possuem 8.000 ogivas nucleares
activas e operacionais. 2.000 estão em alerta máximo, prontas a serem
lançadas em 15 minutos. Estão a desenvolver novos sistemas nucleares
chamados "bunker busters" ( destruidores de bunkers). Os britânicos,
sempre cooperantes, tencionam substituir o seu próprio míssil nuclear,
o Trident. Quem, pergunto-me eu, querem eles atingir? Ossama bin Laden?
Tu? Eu? O Zé da esquina? China? Paris? Quem sabe? O que sabemos é que
esta insânia infantil - a posse e a ameaça ao recurso de armas nucleares
está no próprio coração da actual filosofia política americana. Temos
de nos lembrar que os EU estão em permanente pé de guerra e não se vê
sinais de que isso abrande. Muitos milhares,
se é que não milhões de pessoas nos próprios EU, estão manifestamente
cheios de vergonha e irados contra as acções do seu governo mas de momento
ainda não são uma força política coerente - de momento. Mas a incerteza,
a ansiedade, o medo que vemos diariamente crescer nos EU não parece
ir diminuir tão cedo. Sei que o Presidente Bush tem muitos
autores dos seus discursos extremamente competentes. Mas eu gostava
de me candidatar também a esse lugar. E proponho esta breve alocução
que ele pode fazer à Nação através da Televisão. Vejo-o com um ar grave,
cabelo muito penteado, sério, combativo, sincero, às vezes encantador,
com um sorrisinho forçado, com certo poder de sedução, homem comum entre
os homens comuns. ' Deus é bom. Deus é grande . Deus é
bom. O meu Deus é bom. O Deus de Bin Laden é mau. É um mau Deus. O Deus
de Saddam era mau, só que ele não tinha nenhum.. Era um bárbaro. Nós
não somos bárbaros. Não cortamos a cabeça das pessoas. Acreditamos na
liberdade. E Deus também acredita. Eu não sou um bárbaro. Sou o chefe
democraticamente eleito de uma democracia amante da liberdade. Somos
uma sociedade tolerante. Damos electrocussão tolerante e injecções letais
tolerantes. Somos uma grande nação. Não sou um ditador. Ele é. Não sou
um bárbaro. Ele é. E ele. Eles todos. Eu tenho autoridade moral. Vês
este punho fechado? É esta a minha autoridade moral. E não se esqueçam
disso." A vida de um escritor é uma actividade
muito vulnerável, quase nua. Não vamos ter pena dela. O escritor escolheu
isso e mantém-se aí. Mas é verdade dizermos que fica exposto a todos
os ventos, e alguns são glaciais. Está-se realmente sozinho. Sem amparo.
Sem protecção - a menos que se minta, e terás com isso construído a
tua protecção, e poderíamos passar a dizer, tornaste-te político. Já esta noite me referi várias vezes
à morte. Vou então ler-vos um poema meu chamado Morte Onde foi o corpo morto encontrado? Quem encontrou o corpo morto? Estava morto o corpo morto quando foi
encontrado? Como foi o corpo morto encontrado? Quem era o corpo morto? Quem era o pai ou filha ou irmão Ou tio ou irmã ou mãe ou filho Do corpo morto e abandonado? Estava morto o corpo quando foi abandonado?
O corpo foi abandonado? Por quem foi ele abandonado? Estava o corpo morto nu ou vestido para
viagem? O que te fez declarar morto o corpo
morto? Declaraste morto o corpo morto? Conhecias bem o corpo morto? Como soubeste que o corpo morto estava
morto? Será que lavaste o corpo morto Será que lhe fechaste ambos os olhos
Será que enterraste o corpo Será que o deixaste abandonado Será que beijaste o corpo morto Quando olhamos um espelho, pensamos
que a imagem à nossa frente é exacta. Mas basta movermo-nos um milímetro
e a imagem altera-se. Aquilo que estamos realmente a ver é uma série
infindável de reflexos. Mas às vezes o escritor tem de quebrar o espelho
- porque é do outro lado do espelho que a verdade nos espera de frente.
Estou convicto de que, a pesar dos inúmeros
obstáculos que existem, nós, cidadãos, com uma feroz determinação intelectual,
inquebrável, sem desviar, conseguiremos definir a verdade real das nossas
vidas e das nossas sociedades - e essa é uma obrigação crucial que nos
diz respeito. É de facto obrigatória. Se essa vontade não estiver incorporada
na nossa visão política, não tenhamos esperança de restaurar aquilo
que já quase se perdeu para nós - a dignidade do homem. Harold Pinter |