A Nossa Europa ou
o Reino Dividido


In Público
(
Quinta-feira, 13 de Março de 2003

Por
EDUARDO LOURENÇO

Todo o reino dividido perecerá - Ev

.Em vésperas do que já é uma concessão de monta, chamar guerra, pois se trata de uma mera expedição punitiva ainda sem nome, a nossa Europa, a nossa realmente velha Europa, já a perdeu sem entrar nela. Ao menos como actor unânime ou comparsa assumido dessa cruzada metafísica em nome do bem contra o mal. Os europeus que se atrelaram ao carro de César, como os gauleses no tempo do vero e divino Júlio, pensam salvar assim os móveis dessa mesma Europa que acabam de assassinar. Na senda do vencedor, certos de acertar no bom alvo, pensam assim não perder de todo a barca da história que, como europeus, já perderam.

Só na aparência e no recorte do gesto, a adesão dos sete países da jovem Europa à boa causa americana, onde, para espanto nosso, se inclui a antiquíssima Hispânia, nas suas duas versões, a mais antiga Itália, a ex-bárbara Polónia, apenas liberta do glacis soviético, é uma verdadeira surpresa. Menos o é ainda a carta de Aznar, sugerida por Wall Streete apadrinhada por Tony Blair. Ninguém melhor do que nós, europeus, sabe que a Europa unida é uma ficção, que a sua história é a das suas divisões em todas as ordens, desde as militares às políticas, religiosas ou ideológicas. Podíamos e devíamos incluir a ordem cultural, a que as outras todas se reduzem ou de que procedem, embora uma mitologia tenaz não considere esse factor. Ora, vendo bem, é aí, melhor do que em qualquer outra ordem de razões, que se pode encontrar a raiz da nossa crónica dissensão interna que, neste momento, toma a forma de duas europas: uma, alinhada política, militar e ideologicamente com os Estados Unidos; outra, que tenta preservar, em torno do eixo menos tradicional França-Alemanha, o que resta do sonho de uma União Europeia com o mínimo de identidade e de projecto político comum. Ora só o nosso passado comum de europeus pode explicar, em parte, essa dissensão.

Verdadeiramente unida, mas então a essência dessa unidade era de carácter religioso, a Europa só o esteve nos tempos inaugurais da Idade Média cristã, que vão desde a batalha de Poitiers até ao primeiro Cisma que separou a Igreja romana da Igreja ortodoxa de língua grega. Foi a primeira das cicatrizes indeléveis que ainda hoje costuram a túnica dilacerada da Europa. Mais funda e ainda sensível e visível a olho nu é a segunda cicatriz, a que a Reforma abriu no tecido romano-medieval da Europa. A sua versão política mais eficaz terá a Inglaterra como ferro de lança até hoje. Paralela à invenção ou desenvolvimento da ciência, em sentido moderno - essa ciência que se tornou na quintessência da civilização ocidental -, essa cisão imporá pouco a pouco, ao mais arcaizante espaço barroco, a sua lei, a sua estratégia, contendo já claro desígnio de um imperialismo de tipo novo, estendido ao planeta inteiro. É dessa tradição anglo-saxónica que, após as duas guerras suicidárias em que a Europa se envolveu, os Estados Unidos serão os herdeiros. Ela bastou-lhe para resistir ao imperialismo soviético e, uma vez implodido este, para ficar sozinha em campo.

Foi no intervalo entre a guerra fria e a queda do muro de Berlim que a Europa - a Europa dos vencidos, "vaticana" como se lhe chamou pela inspiração dos seus três proponentes -, e aparentemente com o beneplácito dos Estados Unidos, tentou construir uma Comunidade Europeia digna desse nome. Em termos empíricos, o seu sucesso foi e é prodigioso. Todavia, e sem paradoxo algum, enquanto entidade política viável, comparável a uma nação - e não conhecemos nenhum quadro viável fora deste -, a nossa bem sucedida Europa (a Europa da Ariana, do TGV, da indústria automóvel, da informática) é uma casca de noz, sem noz nenhuma dentro.

Não há existência política sem poder que a assuma como sujeito dela, e um tal poder não existe como suporte de nenhuma Europa. Politicamente só há europas. O lugar do poder nunca está vazio. Ora a Europa, politicamente falando, é esse lugar sem poder dentro, um lugar vazio. Na Europa, o poder só existe como conjunção variada dos poderes autênticos detidos pelas nações e, em particular, por aquelas que aos próprios olhos, e aos olhos dos outros parceiros, foram, sucessivamente, poder europeu em sentido pleno. Não foram muitas: a Espanha até ao séc. XVI, a França, a Inglaterra, a Áustria, a Rússia, a Prússia e a Alemanha sua continuadora, em seguida.

Neste momento nenhuma nação é Europa. A que mais se parece com uma antiga nação europeia, de vocação universal, está agora incluída na esfera do único poder de facto com expressão planetária. Até ver, pelo menos. É por isso que a actual dissensão europeia, oficializada pela espectacular adesão dos sete países europeus à anunciada guerra preventiva já em curso, e, para além dela, da mais radical estratégia de domínio universal dos Estados Unidos é um facto político sem precedentes na história da Europa. Pela primeira vez não é de dentro, como durante séculos aconteceu, que a Europa se divide, mas de fora. A Europa divide-se por causa e em função da política imperial hegemónica dos Estados Unidos. Este é um dado novo da nossa história. Tão novo que pode dizer-se que essa história - a nossa, de europeus como nunca o tínhamos sido - está em vias de terminar quando parecia principiar. A menos que...

O que estamos vivendo não é uma mera crise europeia. De crises europeias está a nossa história cheia e o mundo farto. O que estamos vivendo é a Europa como crise. Isso só surpreende quem imaginava que a Europa em construção estava feita, ou quase, quando realmente ela esteve sob tutela política e entre parêntesis durante quase meio século (vigiada ao mesmo tempo pelos Estados Unidos e a União Soviética). A queda do Muro alterou os dados da questão, mas não o fundo no que diz respeito à Europa. Haverá quem pense que depois dessa queda a nossa nova condição de gregos dos americanos não é assim tão desagradável como isso. Mas essa ilusão (deliciosa para tantos...) é ainda uma leitura de europeus já inconscientemente escravos. Nada indica que os novos romanos - em todo o caso, estes que estão assumindo a cruzada bíblica contra a Jericó-Bagdad - nos tomem por gregos. Eles mesmos são os seus gregos. Não precisam de nós para o ser, basta ler o que, neste momento, dizem de si mesmos e de nós.

Devemos resignar-nos, reconhecer que merecemos o subalterno destino que é já o nosso ou o definitivo que nos espera, ou rever de alto a baixo a nossa mitologia europeísta, rejeitando o pendor masoquista da nossa cultura e recomeçar de novo e noutros termos uma Europa a partir da sua hora zero? Chamava-se assim um filme sobre a Alemanha em ruínas dos anos 50. Quem viu e mesmo se passeou por entre essas ruínas alemãs sabe que se pode ressurgir de todos os túmulos, como dizia Nietzsche.

Nós somos vítimas de uma dupla e inadequada leitura: a de uma exagerada mitificação dos Estados Unidos e do seu poder, que é real, mas mais frágil do que se imagina, e de uma absurda crise de confiança nesta nossa Europa, sem dúvida dramaticamente dividida, mas ainda assim não só potencial mas realmente mais rica, que espaço algum (incluindo o dos Estados Unidos) em matéria de "savoir faire", de imaginação e de energia intelectual e vital. Pelo menos tanto. Por isso, nada justifica que cedamos à tentação de nos deixar morrer, como D. Quixote, nosso patrono, por um acesso de melancolia histórico ou de muyto hispanico desengaño. Isto não significa cruzarmo-nos, por ressentimento (agora que já não temos soberba), contra os Estados Unidos, pois de algum modo também eles são europeus e nós, por nossa vez, americanos, mas lutar contra nós mesmos, como divididos, dentes de Cadmos sem emenda, como dizia já Camões, e, todavia, herdeiros dos Leonardo, dos Galileu, dos Newton, dos Pasteur, dos Einstein, que emprestaram à nossa empírica vida a universalidade que a tornou partilhável pela humanidade inteira. E não menos dos Cervantes, dos Shakespeare, dos Molière, dos Dickens, dos Tolstoi, dos Proust e dos Kafka que humanizaram ou sobre-humanizaram essa universalidade.

Este combate por nós mesmos e contra nós mesmos, como dever de europeus que não querem morrer ou sobreviver como escravos de poderes que se apresentam como a força mágica de Senhores dos Anéis, nada tendo de luminoso nem de redentor, não é um reflexo de pânico de antigos actores da história. É só a convicção de que a guerra em que já entrámos diz respeito ao destino do mundo. Na aparência um só pensador é actual, Hobbes. Convém meditá-lo e tê-lo presente. Mas é possível que gerações e gerações de homens mais nada tenham feito, sonhando um futuro cada vez menos inumano, do que ir ao encontro de Leviatã para gozar nos seus braços monstruosos daquela paz que só o poder, um poder extasiado consigo mesmo, imagem ou sósia do bem, nos garante?

Vence, 6 de Março de 2003