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Ao
atravessar as ruas da Baixa e o Rossio, ainda em obras, quando
a poalha desta luz de Maio enevoada doira vagamente as cimalhas
e mansardas das velhas casas pombalinas, clareando o ocre do
Teatro D. Maria, parece-me ter sonhado a vida que por aqui vivi.
Já não me reconheço na criança que
às vezes vinha de Moura e atravessava o grande rio, de
olhos deslumbrados, entre gaivotas e navios descomunais, e desembarcava
no Terreiro do Paço, todo simétrico na sua verde
harmonia palaciana. Do alto da sua altivez, o cavaleiro do cavalo
negro dominava o mundo e fazia correr mais depressa o sangue
nas minhas veias. O táxi entrava na corrente do trânsito,
que também me surpreendia, outro tempo ali começava
a nascer, e os meus olhos erguiam-se, exorbitados, para o emblema
da cidade, talvez a sua alma, aquele arco imenso, com prodigiosas
esculturas, umas violentas, tal como eu as retinha, outras majestosas
e da brancura dos lugares supremos.
Quando vim morar em Lisboa, já na adolescência,
a minha vida decorria sobretudo nas Avenidas Novas e um pouco
mais tarde na antiga Faculdade de Letras, Rua da Academia das
Ciências. Vinha então à Baixa porque o meu
alfaiate (ainda as pessoas comuns faziam os fatos por medida)
ficava na Rua de Santa Justa. E, quase sempre que lá
ia, passava, como toda a gente (uns mais apressados, outros
menos, sinais da roda da fortuna ou do relógio interior
de cada um), por aquelas ruas que ainda não me pareciam
estreitas, onde o vento por vezes gemia, acompanhando os cegos
que tocavam violino e os gritos dos cauteleiros e dos ardinas.
Já então a Baixa era um grande centro comercial,
onde muitos casais, com os meninos pela mão, vinham aos
domingos contemplar as montras. A pequena multidão engrossava
às horas de ponta, era por vezes uma autêntica
enxurrada de corpos alheios e agressivos, empurrando-se, arfando,
tossindo, e onde às vezes se cruzavam dois olhares subitamente
acesos em desejo ou compreensão, fadados quiçá
para se entenderem por todo o sempre, e que logo se perdiam
um do outro, como sucede no giro incessante das grandes cidades.
Continuo a gostar muito da Baixa, do seu estridor, do jardim
de saibro que o Rossio já foi, com as suas fontes e estátuas,
o falso D. Pedro vestido agora de tapumes. Mesmo cheia de pó,
de aterros e buracos traiçoeiros, acidentes transitórios,
volto sempre à Baixa dos tocadores de concertina nas
escadinhas de Santa Justa, dos turistas coloridos, de binóculo
e máquina fotográfica a tiracolo, olhos voltados
para cima, acompanhando a pesada gaiola do ascensor. Apesar
da falta de pintura dos prédios, do certo abandono de
quarteirões inteiros dessa cidade baixa delicadamente
setecentista, a sua fauna humana, renovada, persiste: lá
vão as melancólicas costureiras de alfaiate, muitas
das quais perderam o emprego, o cantor da voz triste, que comovia
algum melómano perdido na onda de gente apressada. Eis
os cães dos drogados cheirando a hache e a suor curtido;
e os mesmos barbeiros, agora cabeleireiros, de bata azul e com
o "Record" na mão, espreitando, à porta,
o cliente da hora certa; e a insolência dos "klaxons",
a empurrarem furiosamente a condutora da frente; o povo a correr
para os bancos.
Morava numa trapeira da Rua da Madalena uma das namoradas dos
meus 17 anos. Não a primeira, que essa era italiana,
estudante e sardenta, e ensinou-me, num ardente Agosto do Estoril,
entre mar e casino, quase todos os segredos e requintes do amor
fora de regras. A Conceição, corista do Parque
Mayer, que chegou logo a seguir à minha educação
erótica, era paradoxalmente menos libertina e muito mais
romântica. Linda de pasmar, parecia, ora uma "starlet",
ora virgem de altar, até pelos azuis vaporosos que vestia.
Havia um ou mais sujeitos ricos que a sustentavam (com o que
ela ganhava, coitada, não tinha outro recurso), e atrevia-me
eu a ter ciúmes, tão pouco sabia das crueldades
daquela vida. Um dos banqueiros podia passar por galã
maduro, mas só sabia comprar, comprar, até o prazer,
que eu colhia de todas as partes do corpo dela, sem saber sequer
como a cativara, se por sedução quase inconsciente
ou por a fazer rir dos meus despropósitos. Quando ela
saía da segunda sessão da revista, já muito
tarde, ainda íamos às vezes dançar ao Bar
do Cristal, ou então arrastava-me até ao Cais
das Colunas, de mão dada, para vermos a noite ainda a
arder de estrelas, que caíam no Tejo, e só depois
fazíamos amor longamente na trapeira onde ela morava,
e as suas lágrimas, no fim da nossa festa e das suas
confissões, eram cristais desmaiados que me cortavam
a voz.
Adorava roupas à moda, que eu não podia dar-lhe,
corria às vezes os olhos aguados pelas montras luxuosas
da Rua Augusta, a puxar por mim, se me acontecia passear com
ela, de tarde. E íamos beber chocolate à Central
da Baixa. Nessa pastelaria calma e elegante, muitos anos depois,
sendo eu já redactor do "Diário de Lisboa",
acabara de comprar em segunda mão uma arrastadeira de
11 cavalos, creio que foi no ano da Revolta da Sé, acontecia-me
não raro ali conspirar e almoçar um bife raspado,
à alemã, ou dois pães de leite com fiambre
e manteiga e um "indiano" recheado com café.
A Baixa era para mim ponto de encontro com outros oposicionistas,
que ali tinham escritório, como o Mário Soares,
na Rua do Ouro, ou o Abranches Ferrão, que editou, pelo
jornal de Foro, a minha novela "Uma Noite e Nunca",
apreendida pela Censura, e que tinha banca na Rua do Crucifixo,
com o Luiz Francisco Rebello, o Duarte Vidal e, mais tarde,
o José Carlos de Vasconcelos, se a memória não
me atraiçoa. É a altura do "Programa para
a Democratização da República", que
a todos nos levou à PIDE, ao Aljube ou a Caxias, e que
a muitos valeu longos meses de encarceramento.
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Na
Rua de Santa Justa e mais tarde na Rua da Vitória, cortou-me
o cabelo durante algumas décadas um alentejano simpático,
de bigodinho aventureiro, o Sebastião Carrajola de Figueiredo,
ex-menino do coro em Portalegre, cheio de lábia e assanhado
defensor do 25 do Quatro, como ele dizia, que ali mesmo combatia
a reacção, dentro dos limites que o ofício
lhe consentia, e chegou a ter a subida honra (sic) de barbear
e pentear o seu camarada Salgado Zenha, cuja candidatura à
Presidência da República veio mais tarde a subscrever
- e disso muito se orgulhava.
Foi na Rua do Ouro, junto ao elevador de Santa Justa, que numa
tarde histórica apanhei um dos panfletos de denúncia
do fascismo que o Palma Inácio, ao volante de um avião
militar roubado, ou melhor, apreendido em nome da liberdade,
lançava sobre Lisboa, numa nuvem branca, cintilante de
esperança. Pouco depois do paquete "Santa Maria"
ser transformado, por um comando revolucionário, em "Santa
Liberdade".
Outra visão: a da Rua do Arsenal, memória viva,
inapagável, dos operários da Resistência,
como o Bento Gonçalves. E nessa mesma rua, o enxame de
lojas e lojinhas de todas as coisas e todos os sonhos, pintado
por Cesário Verde, nas "Ave Marias".
Foi
o José Cardoso Pires quem me chamou a atenção
para as lojas de aparelhos ortopédicos que se seguem
umas às outras na Rua dos Fanqueiros, anos antes de descrever
admiravelmente essa estranha paisagem urbana em "A Balada
da Praia dos Cães".
Por falar em escritores, quero lembrar a Baixa de José
Gomes Ferreira e de Armindo Rodrigues, companheiros de deambulações
líricas pela noite de Lisboa, que o segundo fixou nas
suas "Dez Odes ao Tejo", enquanto o autor do "Poeta
Militante" nos fala não só do rio como do
Largo de São Domingos e das putas tristes dessa área,
fantasmas de um vazio de Julho.
Desapareceram muitos dos cafés do Rossio, onde o surrealismo
abancou, sobretudo no Gelo, entre eles o Chave d' Ouro, onde
Humberto Delgado deu a célebre conferência de Imprensa,
em que estrondeou o "Obviamente demito-o", que tanto
afrontou o orgulho de Salazar. Do Chave d'Ouro tenho também
na lembrança o David Mourão-Ferreira, supremo
encantador da palavra, lendo versos numa tertúlia lá
em cima, e o Abelaira escrevendo numa absorta mesa, perto da
porta, entre muitas chávenas de café e filosofia
viva.
Os mirones do Rossio, que metralhavam as mulheres sós
com o olhar concupiscente e lhes segredavam galanteios dos mais
obscenos, encandeados pela "seminudez" das refugiadas
estrangeiras durante a guerra de 39-45, tiveram o seu apogeu
machista nos finais dos anos 60, aquando do primeiro surto das
mini-saias e dos "hot-pants", uns shorts muito curtos,
género calção de banho em tecido leve.
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