Uma Herança Cultural


Por
Carla Oliveira

Uma cultura proveniente do outro lado do Atlântico, trazida pela gentinha que para cá veio e que conseguiu sobreviver no novo meio, a maior parte constituída por pessoas de aldeolas portuguesas trouxeram hábitos da época, em que partiram de Portugal. Chegaram ao Canadá principalmente nos anos 50, 60 e 70. Três décadas que correspondem a diferentes percepções da sociedade, pois vieram todos com as suas ideias, com a sua religião, com os seus valores, com os seus sotaques da terra...reflectiam aquilo que eram. Ao chegar a estas terras frias, aglomeraram-se nas grandes cidades e organizaram-se entre si para recordar, para não esquecer, para matar saudades.

Cinquenta anos de ocupação portuguesa em território canadiano. Uma cruzada feita em nome da liberdade, do dinheiro, de um melhor futuro ou tão só do gosto pela aventura. Cada emigrante tem a sua historiazinha que se diluiu na própria comunidade, cuja memória se foi perdendo... ainda que aos jovens se ensine a epopeia do reino de Portugal, mas não se lhes lembram os esforços dos primeiros imigrantes que para cá vieram.

Tentou-se passar às gerações seguintes que aqui nasceram a cultura portuguesa, porque os portugueses que aqui chegaram, desejaram transmitir aos filhos os valores, as tradições e a língua que lhes pertenciam. A cultura foi contada, ensinada, propagada numa forma que parece nunca ter evoluído. Por isso, tenho a impressão de que se trata de uma cultura que permanece ão incompleta. Tenho a impressão de ter herdado uma cultura amputada: um "puzzle" a que lhe faltariam peças. Fico, assim, com a impressão de ter crescido numa cultura desconjuntada, cujos factos históricos foram filtrados, a música seleccionada, certos escritores destacados em detrimento de outros. Por seu turno a língua subjacente a essa mesma cultura, despida da sua historicidade, foi apenas transmitida nos seus aspectos gramaticais rudimentares. Assim sendo, desejo esclarecer que não herdei a cultura portuguesa, mas sim, uma cultura que pertence à cultura portuguesa, mas que não é em si mesmo a cultura portuguesa; faço parte da cultura da diáspora portuguesa, a cultura do emigrante português. Uma cultura em que os jovens sabem quem é Quim Barreiros, mas não sabem quem é José Afonso. Uma cultura em que os jovens sabem quem foi D. Afonso Henriques, mas não sabem o que fez Salazar. Nesta cultura onde cresci, quem poderei culpabilizar por não ter uma cultura "inteira"? A uma comunidade que conseguiu organizar-se à margem, apenas nos fins-de-semana? Não, porque uma cultura foi transmitida e foi a cultura da maioria, uma cultura popular que corresponde aos que para aqui vieram e, no fundo, estou contente por tê-la recebido.

Cresci com esta cultura chamada falsamente portuguesa e aprendi a amá-la, a estar orgulhosa dela e a nela acreditar. Porém, a minha realidade é complexa visto que cresci em paralelo nas culturas canadiana e quebequense. Uma mistura onde o equilíbrio nem sempre é fácil, visto que a realidade é, assim, triplicada por três grelhas culturais com as quais posso analisar a sociedade. Serei assim uma super-herdeira de três culturas? Será que uma delas é mais forte? Os meus pais diriam que é a portuguesa porque cresci nela! Isto pode parecer exacto, mas no dia à dia, estou mais em contacto com as minhas outras culturas...
Ao lado de jovens de Coimbra ou de Braga, quem sou eu? Poderei ser uma jovem portuguesa da mesma forma que eles? Penso que não... Haverá sempre alguém para lembrar-me que não falo bem português, que tenho outra maneira de pensar e que como coisas esquisitas. Sou filha de portugueses, tenho passaporte português, mas cresci em Montreal. A minha identidade foi influenciada por outras variáveis... culturais, gastronómicas, linguísticas, ou até socioeconómicas, o que faz com que seja sempre um produto cultural diferente: uma luso-canadiana.

Hoje tenho 25 anos. Deste meio século passado de presença portuguesa no Canadá, vivi a segunda metade. Cheguei a crescer plenamente na cultura dita "de emigrante". Mas, ouvi muitas histórias sobre a "primeira era", histórias de gente que se organizava e onde a vida cultural, política, e associativa estava a florescer. Fico triste ao pensar que não pude viver a primeira metade onde tudo se construía. Hoje tenho 25 anos, e sou testemunha de uma comunidade que sinto dispersa, fragmentada, envelhecida. Tenho a impressão que a minha herança cultural resume-se a associações decadentes, uma língua de casa que alguns chamam o brutuguês, uma cultura qualificada de pimba, bolinhos de bacalhau e pastéis de nata. O que se terá passado? Como fazer para dinamizá-la?

Tenho uma herança de cinquenta anos da comunidade portuguesa em Montreal. Uma cultura mal conhecida, mas que conseguiu evoluir. Mas hoje, quero mais: quero completá-la, quero modernizá-la e quero evoluir com ela. Daqui a 50 anos, quero, eu também, deixar uma herança cultural a esta comunidade. Será que tenho um papel na história cultural que está agora à construir-se? Sim, acredito que o meu papel venha a ser o de qual artesã, modelar uma cultura que melhor corresponda à realidade dos jovens de hoje.
Todavia, antes de mais nada, terei de continuar a acreditar nesta cultura, a minha cultura.