ENTRE CARRUAGENS

Por
Ana Fernandes


Primeiro Prémio Literário
50 Anos da Presença Portuguesa no Canadá - Partidas e Chegadas


“Que pena!” – pensou Glória. A aldeia desaparece sem que seja possível olhá-la. É sempre assim quando um comboio abandona uma plataforma... A aldeia - antes alegre e airosa - mostra-se acanhada por detrás das carruagens que a eclipsam. Diz-se que as aldeias não existem – apenas são paisagens para os comboios que chegam e que partem...

Finalmente, o tão desejado dia tinha chegado. Pela primeira vez, teria a oportunidade de andar de avião. Não ignorava o que fosse um avião. Simplesmente, o conhecimento do mesmo baseava-se na televisão. Agora, não! Seria uma das muitas a compor o público viajante. Pela primeira vez, marcaria presença em algo. Sentia-se importante só em pensar que teria a ocasião de sair do sotão da sua existência, onde se tinha refugiado (ou onde a tinham encarcerado) desde um momento na sua história que a memória já não alcança.

Tinha sido uma jornada díficil. Só, descalça e desprotegida, tivera que enveredar por esse trilho que ora iluminado pelo sol, ora inspirado pela ténue luz da lua, prometia avançar, dava a esperança do horizonte alcançar, mas nada fazia para a orientar. Quantos eclipses presenciou! Quantas nuvens a tapar esse astro que mais não era que o seu farol, qual poesia cruel e maravilhosa que toca nos limites do divino e do surreal com visões extáticas de anjos e de liras em delírio. Canadá!

- Cá nada! Não era assim que me tinham ensinado?

Glória lembrava-se da sua infância, com os dedos cheios de tinta da caneta. Tinha aprendido a ler quando contava apenas três primaveras. A avó materna terá sido a responsável por esta abertura à solidão culta – porque ler é um caminho que nos leva a uma solidão que não queremos viver, mas que persiste em nos habitar! A hora de entrar num mundo paralelo em que uma nova vida estava prestes a brotar, era chegada para Glória. Encontrava-se nesse mundo onde já vivera através das suas aventuras, mas que agora tinha que enfrentar. A era glaciar ainda não tinha abandonado esta parte do hemisfério norte. Arrepia-se porque o ar arrefeceu e começa a gelá-la.

- How old are you, Glória?

Com esta saudação, Glória começara essa caminhada penosa que mais não era que uma partida amarga, herdada no início da sua adolescência. Não compreendera uma única palavra que aquela professora lhe tinha dirigido. Uma lágrima rolou pela face. Onde estava a aldeia eclipsada pelas carruagens do comboio? O que teria acontecido ao sótão da sua existência, agora substituído pela cave? Como confessar a fuga pelos cais frágeis do sonho onde há homens que morrem a olhar o mar, na esperança de o alcançar, como se a vida não fosse mais terminar?!
- Porque vim eu para o Canadá?

- Para aprenderes inglês e teres um melhor futuro. – dissera-lhe a mãe.

Os pais emigraram ainda jovens, na ilusão de conseguir concretizar esse sonho que lhes alimentava a alma. Faziam parte do grupo que tinha chegado duas décadas após os primeiros aventureiros. Traziam na mala o tal plano de um melhor futuro. Um plano? Para que serve um plano? O verdadeiro percurso não se delineia sobre o papel. Apenas existe - nas linhas densas dessas mãos quentes, semelhante a um refúgio, a um abrigo. “Não sei como acabará o dia. A noite. Não sei nada. Absolutamente nada”.

Glória estava em frente a um estabelecimento português situado nesta aldeia eclipsada por arranha-céus. A neve fustiga-lhe a cara e o frio polar trespassa-lhe os ossos. Entra na pastelaria. Ao fundo, uma televisão declama as notícias que vão chegando de Portugal. No écran, estão colados os olhares perplexos dos presentes. Uns confusos. Outros sábios. Todos têm uma opinião sobre o que vão escutando. “Aquilo por lá está mau! É só desemprego, pessoas a queixarem-se. O meu vizinho veio de lá no outro dia e diz que o dinheiro não se vê. Vai-se ao mercado e gasta-se uma mão cheia de dinheiro em duas saquitas”. Pronunciam, cada um de sua vez, frases que nunca foram ditas, sentenças que nunca foram dadas. As suas palavras misturam-se: Glória já não sabe muito bem quem fala, quem responde... mas pouco importa. O rosário de lamentações prossegue, alterado com a via-sacra que a televisão vai apresentando.

Através da janela, observa os que passam. Todos têm “pinta” de portugueses. Uns para cá, outros para lá, todos parecem preocupados com alguma coisa que não consegue ler nos seus rostos, mas cujas expressões a fazem concluir que deve ser sério. Pergunta-se se terá valido a pena esta viagem. Para que serviu ter abandonado a aldeia, se se veio encontrar noutra semelhante à que deixou eclipsada? ‘Tá bem! Tinha aprendido a falar inglês. Pelo menos, já sabia dizer a sua idade nessa língua que forma as frases ao contrário. É engraçado: quando observamos um árabe escrever, achamos estranho o facto de o fazer da direita para a esquerda. No entanto, ninguém contesta o facto do inglês fazer o mesmo com as estruturas gramaticais das suas frases. Esqueceu-se se queria um café preto com açúcar ou se queria um preto com açúcar café. Também pouco importa. Agora é “cool” falar inglês...

Glória preparava-se para participar numa conferência para jovens luso-canadianos. Tinha sido convidada pelo grupo organizador para partilhar a sua experiência de adaptação ao Canadá. Como se a sua história interessasse a alguém ou fosse capaz de ajudar a aproximar os jovens da sua origem portuguesa! O problema não estava na aproximação. O obstáculo encontrava-se nas barreiras criadas pelos habitantes da aldeia eclipsada por arranha-céus que persistiam em querer impor aos mais jovens a visão da sua própria juventude. “Participem nos ranchos e nos bailinhos, nas procissões e bandas de música. Hoje, é o dia dos teus anos: vou dedicar-te o Teixeirinha com “Parabéns” pelos teus sweet 16”. Estas manifestações de portuguesísmo provocavam em Glória uma enorme vontade de rir.

Devem ser duas horas... impossível de saber exactamente porque não há relógios, essas máquinas cuja função – alguém se lembrou de dizer – é de indicar o tempo. Glória encontra-se na plataforma, olhando o horizonte. Baixa os olhos da alma com vergonha por ter dedicado tanto tempo às amarguras. “Qual de nós irá ao encontro um do outro?” – pensou. Talvez haja necessidade de construir um túnel com algumas passagens torturosas. O hábito.
Desta vez, a aldeia existe de verdade. A aldeia é um círculo onde ela é o núcleo. Não há paisagens para o comboio que parte... ou que chega. A aldeia revela, enfim, os seus campos, as suas casas, sem ilusões nem desilusões. Glória sabe que viverá sempre entre estes dois mundos paralelos.