“Que pena!” – pensou Glória. A aldeia desaparece
sem que seja possível olhá-la. É sempre assim quando
um comboio abandona uma plataforma... A aldeia - antes alegre e airosa
- mostra-se acanhada por detrás das carruagens que a eclipsam.
Diz-se que as aldeias não existem – apenas são paisagens
para os comboios que chegam e que partem...
Finalmente, o tão desejado dia tinha chegado. Pela primeira vez,
teria a oportunidade de andar de avião. Não ignorava o
que fosse um avião. Simplesmente, o conhecimento do mesmo baseava-se
na televisão. Agora, não! Seria uma das muitas a compor
o público viajante. Pela primeira vez, marcaria presença
em algo. Sentia-se importante só em pensar que teria a ocasião
de sair do sotão da sua existência, onde se tinha refugiado
(ou onde a tinham encarcerado) desde um momento na sua história
que a memória já não alcança.
Tinha sido uma jornada díficil. Só, descalça e
desprotegida, tivera que enveredar por esse trilho que ora iluminado
pelo sol, ora inspirado pela ténue luz da lua, prometia avançar,
dava a esperança do horizonte alcançar, mas nada fazia
para a orientar. Quantos eclipses presenciou! Quantas nuvens a tapar
esse astro que mais não era que o seu farol, qual poesia cruel
e maravilhosa que toca nos limites do divino e do surreal com visões
extáticas de anjos e de liras em delírio. Canadá!
- Cá nada! Não era assim que me tinham ensinado?
Glória lembrava-se da sua infância, com os dedos cheios
de tinta da caneta. Tinha aprendido a ler quando contava apenas três
primaveras. A avó materna terá sido a responsável
por esta abertura à solidão culta – porque ler é
um caminho que nos leva a uma solidão que não queremos
viver, mas que persiste em nos habitar! A hora de entrar num mundo paralelo
em que uma nova vida estava prestes a brotar, era chegada para Glória.
Encontrava-se nesse mundo onde já vivera através das suas
aventuras, mas que agora tinha que enfrentar. A era glaciar ainda não
tinha abandonado esta parte do hemisfério norte. Arrepia-se porque
o ar arrefeceu e começa a gelá-la.
- How old are you, Glória?
Com esta saudação, Glória começara essa
caminhada penosa que mais não era que uma partida amarga, herdada
no início da sua adolescência. Não compreendera
uma única palavra que aquela professora lhe tinha dirigido. Uma
lágrima rolou pela face. Onde estava a aldeia eclipsada pelas
carruagens do comboio? O que teria acontecido ao sótão
da sua existência, agora substituído pela cave? Como confessar
a fuga pelos cais frágeis do sonho onde há homens que
morrem a olhar o mar, na esperança de o alcançar, como
se a vida não fosse mais terminar?!
- Porque vim eu para o Canadá?
- Para aprenderes inglês e teres um melhor futuro. – dissera-lhe
a mãe.
Os pais emigraram ainda jovens, na ilusão de conseguir concretizar
esse sonho que lhes alimentava a alma. Faziam parte do grupo que tinha
chegado duas décadas após os primeiros aventureiros. Traziam
na mala o tal plano de um melhor futuro. Um plano? Para que serve um
plano? O verdadeiro percurso não se delineia sobre o papel. Apenas
existe - nas linhas densas dessas mãos quentes, semelhante a
um refúgio, a um abrigo. “Não sei como acabará
o dia. A noite. Não sei nada. Absolutamente nada”.
Glória estava em frente a um estabelecimento português
situado nesta aldeia eclipsada por arranha-céus. A neve fustiga-lhe
a cara e o frio polar trespassa-lhe os ossos. Entra na pastelaria. Ao
fundo, uma televisão declama as notícias que vão
chegando de Portugal. No écran, estão colados os olhares
perplexos dos presentes. Uns confusos. Outros sábios. Todos têm
uma opinião sobre o que vão escutando. “Aquilo por
lá está mau! É só desemprego, pessoas a
queixarem-se. O meu vizinho veio de lá no outro dia e diz que
o dinheiro não se vê. Vai-se ao mercado e gasta-se uma
mão cheia de dinheiro em duas saquitas”. Pronunciam, cada
um de sua vez, frases que nunca foram ditas, sentenças que nunca
foram dadas. As suas palavras misturam-se: Glória já não
sabe muito bem quem fala, quem responde... mas pouco importa. O rosário
de lamentações prossegue, alterado com a via-sacra que
a televisão vai apresentando.
Através da janela, observa os que passam. Todos têm “pinta”
de portugueses. Uns para cá, outros para lá, todos parecem
preocupados com alguma coisa que não consegue ler nos seus rostos,
mas cujas expressões a fazem concluir que deve ser sério.
Pergunta-se se terá valido a pena esta viagem. Para que serviu
ter abandonado a aldeia, se se veio encontrar noutra semelhante à
que deixou eclipsada? ‘Tá bem! Tinha aprendido a falar
inglês. Pelo menos, já sabia dizer a sua idade nessa língua
que forma as frases ao contrário. É engraçado:
quando observamos um árabe escrever, achamos estranho o facto
de o fazer da direita para a esquerda. No entanto, ninguém contesta
o facto do inglês fazer o mesmo com as estruturas gramaticais
das suas frases. Esqueceu-se se queria um café preto com açúcar
ou se queria um preto com açúcar café. Também
pouco importa. Agora é “cool” falar inglês...
Glória preparava-se para participar numa conferência para
jovens luso-canadianos. Tinha sido convidada pelo grupo organizador
para partilhar a sua experiência de adaptação ao
Canadá. Como se a sua história interessasse a alguém
ou fosse capaz de ajudar a aproximar os jovens da sua origem portuguesa!
O problema não estava na aproximação. O obstáculo
encontrava-se nas barreiras criadas pelos habitantes da aldeia eclipsada
por arranha-céus que persistiam em querer impor aos mais jovens
a visão da sua própria juventude. “Participem nos
ranchos e nos bailinhos, nas procissões e bandas de música.
Hoje, é o dia dos teus anos: vou dedicar-te o Teixeirinha com
“Parabéns” pelos teus sweet 16”. Estas manifestações
de portuguesísmo provocavam em Glória uma enorme vontade
de rir.
Devem ser duas horas... impossível de saber exactamente porque
não há relógios, essas máquinas cuja função
– alguém se lembrou de dizer – é de indicar
o tempo. Glória encontra-se na plataforma, olhando o horizonte.
Baixa os olhos da alma com vergonha por ter dedicado tanto tempo às
amarguras. “Qual de nós irá ao encontro um do outro?”
– pensou. Talvez haja necessidade de construir um túnel
com algumas passagens torturosas. O hábito.
Desta vez, a aldeia existe de verdade. A aldeia é um círculo
onde ela é o núcleo. Não há paisagens para
o comboio que parte... ou que chega. A aldeia revela, enfim, os seus
campos, as suas casas, sem ilusões nem desilusões. Glória
sabe que viverá sempre entre estes dois mundos paralelos.