LUSOFONIA: OS NOVOS MUNDOS DO MUNDO
Pesquisa Orientada na Rede
por Luís Aguilar



Recursos na Rede - Sebenta Digital na Rede

O Amor como Caminho
Revisitar as Memórias
Autora:
Luísa Janeirinho
O amor como caminho é o título escolhido para um conjunto de reflexões, sobre diferentes temas, orientado pelo princípio da aproximação/união não (só) ao outro, mas ao Outro.

O amor que aqui se apresenta é um conceito plural e dinâmico que transcende o individual: um caminho composto por sete degraus, anunciado por Platão na obra “O Banquete” que, embora se inicie no amor pela particularidade da beleza do outro, se expande e alcança a beleza em termos abstratos, enquanto princípio eterno do Universo, nas suas múltiplas expressões. E o movimento evolui e encontra o amor pela ética, o amor pelas práticas belas – a integridade, justiça, bondade…-, o amor pelas instituições (pelo seu equilíbrio, harmonia, bem comum), pela ciência e pelo conhecimento, na compreensão do que é universal. Por último, no sétimo degrau, este amor alcança e comunga com a beleza, para além da sua manifestação, autotranscende-se e une-se à origem do Ser – é o caminho entre o amor individual, materializado e particular e um amor expandido como princípio universal e cósmico - esse amor que é congénere da transcendência (Bauman, 2006).

É este caminho do encontro, da compreensão da beleza do Outro, na diversidade das suas expressões, que permite transcender as conceções individuais, imediatas e de satisfação particular e se torna num movimento criador, que une e que amplia, se aproxima da beleza, da ética e do conhecimento, que preserva e cuida.

Neste movimento de aproximação ao Outro subsistem resistências originadas pela leitura do mundo, compostas pelas memórias, vivências e experiências individuais. Desta circunstância emerge, em cada declaração e ação realizada, um conteúdo residual de tempos pretéritos, do qual o indivíduo não se apercebe, pois se confunde com o tempo presente, através do qual representa, simboliza e organiza o mundo que o rodeia mas que contêm aspetos da memória do grupo social onde o indivíduo foi socializado, em que se estabelece uma versão acordada do passado, inserido numa memória oficial da sociedade. Como refere Walter Benjamin é um contínuo “escovar a História a contrapelo”, ou seja, recuperar, através das condições do momento presente (concretas e emocionais), o passado, num permanente movimento de memória em construção. Esta conceção de memória (processo e não produto) não a desvirtua, pois o presente não é solitário nem original – porquanto evoca continuamente tudo aquilo que experienciamos ao longo da vida, na nossa forma pessoal de relacionamento social (Janeirinho, 2003).

A Histórica transmitida traduz-se, muitas vezes, no retrato da memória oficial, filtrada e interpretada por interesses e ideologias dominantes, em cada época, e expressa a versão consolidada de um passado coletivo de uma dada sociedade, com os seus valores, mitos, arquétipos, uniformizadora de lembranças. Uma História construída e protagonizada por uma ocidentalidade que interpretou e registou memórias que urge hoje revisitar, pela impossibilidade de conhecer os Outros (e Nós), mantendo silêncios!

No caso português, este movimento de aproximação e conhecimento ao Outro não conduz à rejeição da nossa História. Pretende, antes, acolher outros valores e processos diferentes, fazer uma abordagem ao incompreensível, através de um método mais sensível, intuitivo e por isso mais subjetivo, pois a História é composta por factos reais (relações de produção, economia, política…) e, também, por um sentido profundo em torno do qual esses factos se organizam e extraem sentido - a produção e troca de Mitos e Ideias. Revisitar a nossa memória individual e coletiva é, também, dar entrada a outras Histórias, repensar outros dados, não tanto em termos dos feitos, do conhecimento das técnicas de combate, de navegação, de mercadorias transacionadas, mas sobre as motivações mais profundas, aquelas que se enraízam no imaginário dos homens e dos povos. Como refere Lima de Freitas, os factos, antes de se tornarem visíveis na História, começam por medrar no imaginário de homens - o sonho, o desejo, a visão.

Cabe aqui refletir e analisar a nossa construção de ver o mundo, os outros e nós - a cultura portuguesa e suas múltiplas interrelações com outras realidades que edificaram esta e as outras identidades - entrelaçar relatos de outros universos culturais e atribuir sentido a uma identidade que não é fixa e a outras identidades que não são produto. Como refere Valleriani, somos entidades históricas concebidas em termos de viagem, fruto de negociação de culturas em viagem (travelling cultures), em que a nossa identidade cultural é habitada por outras culturas, um produto nunca acabado (Valleriani, 2008).

No amor como caminho em direção ao Outro é urgente uma visão mais holística da História onde sejam costuradas memórias emergentes, não monumentalizadas, e valorizados os mitos, os sonhos, os desejos e a cultura empírica (sem descurar as formas de circulação, receção/apropriação) dos coletivos envolvidos, como fatores fundamentais dos seus percursos e marca das suas identidades. É revisitar a memória através de uma abordagem etnográfica aos registos do passado (tangíveis e intangíveis), de uma leitura hermenêutica das fontes, em que se expressam e manifestam narrativas culturais locais e se integram significados e sentidos do Outro numa conexão entre memória, ação presente e projeto de futuro (Escolano, 2002).

Referências Bibliográficas

AUMAN, Zygmunt (2006), Amor Liquido, Relógio d´Agua, Portugal.
BENITO, Agustin Escolano; Diaz Jose Maria, coords (2002), La memoria y el desejo – la cultura de la escuela y educacion deseada, Ceince, Espanha.
FENTRESS, James (1992), Memória social, novas perspectivas sobre o passado, Colecção Teorema, Lisboa.
JANEIRINHO, Luisa (2003), Dar voz aos objectos - contributos dos documentos de vida na construção de um museu de escola, tese de mestrado, Universidade de Évora.
VALLERIANI, António (2008), Por una hermenêutica de perfil híbrido, Universidad Europea Miguel de Cervantes.

Abril de 2009


O Amor como caminho – na “cidade-mundo”
por
Luísa Janeirinho


No seguimento do artigo anterior “ O amor como caminho” cabe-me aqui fazer uma homenagem a António Valleriani(1), filósofo italiano, discípulo de Jauss e de Ricouer que pautou a sua obra, escrita e vivida, no caminho da hospitalidade do Outro. Os conceitos-chave de cidade-mundo, hermenêutica de perfil híbrido, e centralidade policêntrica são produto da sua investigação partilhada, também, no artigo conjunto - “Un Paese Crocevia di Culture e di raças(ii)” (Um país na encruzilhada de culturas e raças) – que cabe, aqui, recuperar.

Neste caminho do encontro com o Outro, da compreensão da sua beleza e da sua singularidade, urge transcender as nossas concepções individuais, e de satisfação pessoal, e aceitar o confronto com a diferença. É um desafio que não tem retorno, sob pena de nos excluirmos da história mas que exige, de todos, uma revolução “coperniana” cultural e social, para superar os erros do passado, pois é uma transformação que impõe a “centralidade da pessoa”, na sua singularidade e irrepetibilidade, ao nível da vida cósmica e da vida do planeta.

Neste amor como caminho é necessário conceber um conceito de centralidade policentrica, como espaço simbólico da humanidade, uma tentativa de colocar um “centro” coabitado, em cada lugar, pelo Homem e pela sua comunidade, fundado numa “ universalidade situada” e concreta, onde se falam várias vozes e que exige, consequentemente, um metamorfose antropológica – o centro, para existir cria, necessariamente, a periferia, como o espaço de vida “inferior” e do subordinado; ao contrário, “os centros”, anulam a idéia da periferia, porque vivem na pluralidade, na presença do Outro, do múltiplo, dando uma consistência diferente à nossa verdade.

O lugar da centralidade policentrica do universalismo da diferença é o centro hibrído, de uma mestiçagem, o espaço da contaminação das culturas, raças, indivíduos, ideias. A miscegenação é uma ordem mental, espiritual, indiferente à cor da pele, à proveniencia, que gera um mundo dialogico da liberdade e da compreensão mútua, onde todos tem o direito à sua intrinseca forma de estar (e não à cópia de uma outra), pelo direiro em exibir uma autonomia, possuir a identidade “novellistic” como a “síntese do heterogeneo”, como refere Paul Ricoeur.

Assim, é importante impulsionar este movimento a fim de nos aproximarmos e conhecermos o Outro, de recebê-lo com hospitalidade, com a troca das memórias. Este movimento de aproximação e conhecimento do Outro não conduz à rejeição da nossa História, antes propõe o seu enriquecimento, pois configura uma identidade edificada por um encontro de culturas, entrelaçada por relatos de outros universos culturais, construída com o Outro, fluida e orientada eticamente.

Pelas razões expostas, o lugar da centralidade policentrica do universalismo da diferença encontra-se na “cidade-mundo”. Em Portugal existem muitas “cidade-mundo” - Lisboa, Coimbra, Évora, Porto, entre outras - cidades que conservam, ainda, as características da civilização romana e, também, a influência de muitas outras culturas, que construiram o ethos barroco.

O conceito da “cidade-mundo”, como expõe o filósofo italiano Mario Perniola, nasce com a civilização romana, da qual o país Lusitano é rico em histórias e memórias.

Roma era uma cidade (urbs) sem uma verdadeira origem - mas apenas um início - onde todos eram estrangeiros, a começar pelo seu fundador, Rómulo, com origem na Longa Alba, Tito Tazio e Numa Pompilio com origem em Sabina, mesmo Enea, protótipo da stirpe romana, tinha sangue grego. Todos em Roma vinham de outro lugar, até as divindades eram de locais e tempos diversos, sendo a cidade o lugar de acolhimento de “várias pátrias”.

O pantheon Romano, enquanto templo de todos os Deuses era, de facto, o local de convergência de todos os que habitavam os vários territórios do império, expressando e simbolizando a diversidade das culturas ali reunidas. Cidadãos de uma “cidade-mundo”, onde todos, sem distinção da raça, religião e cultura, podiam viver na plenitude o direito da sua existência, porque civitas Roman é o sincretismo de todas os manifestacões espirituais do império.

As características da civilização romana das “cidade-mundo” são reencontradas na cultura barroca, muito presente em Portugal, no século XVIII. O barroco é, também, o espaço, não só colonial mas coloidal que se aproxima do Outro e põe em contacto diversas culturas. É o repto de uma racionalidade mestiça. O móbil dos Jesuitas que são filoumanistas na Europa, mas, também, do filoconfucianismo na China, do filoinduismo na India, porque portadores de um pensamento da diferença, que educa no respeito das outras culturas, sem medo das miscigenação, ciente que a mestiçagem é a fundação do mundo.

À força destas considerações interrogamo-nos sobre a possibilidade de concretizar uma outra experiência do mundo - Portugal foi romano, resistiu às invasões bárbaras, foi árabe e é europeu, emergindo nas suas cidades vários estilos: românico, gótico, manuelino, renascentista, barroco, etc. Consequentemente este país é o espaço privilegiado para o retorno das “cidade-mundo”, enquanto espaço simbólico da diversidade da humanidade, onde todas as culturas, superam colonialismos e imperialismos, re-entram no palco cénico da história e fazem ouvir a sua voz.


Notas:
I -António Valleriani foi fundador do grupo de hermenêutica de educação e faleceu em Novembro de 2009.
II - Congresso da AMI (Assistência Médica Internacional), Maio de 2009, Lisboa.

Referências Bibliográficas
PERNIOLA, Mario. (1985). Transiti. Bologna: Cappelli.
RICOEUR, Paul.(1992). «Il nuovo ethos per l’Europa», in Prospettiva persona.
VALLERIANI, Antonio. (2007). «Una idea pedagógica, barroca», en L.E. Primero Rivas, Hermeneutizar la educación. Mexico: Upn.
(2006). Pellegrini nel labirinto del mondo e dell’essere. Gracián e Comenio educatori del Barocco. Milano: Unicopli.
(2008). Por una hermenéutica de perfil híbrido, em, Joaquin Ortega, Cultura, hermenéutica y educación.