A persistência
da escravidão negra
por
Ivan Lira de Carvalho
(Juiz Federal e Professor)
Penso que as páginas mais tristes da história da humanidade
registram episódios de guerra e de escravidão, em razão
do distanciamento que guardam dos mais elementares valores de respeito
ao semelhante. Nem o poder e nem a transversa busca da tranqüilidade
social justificam a guerra.
Da mesma sorte, nenhum avanço econômico e político
pode fundamentar a escravidão.
Entretanto, a conduta de subjugar homens, reduzindo-os à condição
de meros elementos de produção, remonta aos primórdios
da civilização (?). Inicialmente o critério era
de o vencedor escravizar o vencido, estando a História pontilhada
desses lamentáveis eventos, a exemplo da submissão dos
hebreus.
Saltando bem amplamente na linha do tempo, vamos chegar aos meados do
Século quinze com um redirecionamento da escravidão, onde
a brutalização dos homens passou a ter como critério
a sua raça de origem, aferida pela cor da pele. No Brasil por
exemplo, os europeus que aqui aportaram à época primitiva
tomaram como seus os silvícolas que cá viviam desde tempos
imemoriais. Mas precisavam de gente mais rústica para o trabalho
igualmente rude. O negro africano era o ideal.
E foi com base em uma Bula Papal de Nicolau Quinto de 1454, através
da qual a Igreja Católica deu aos portugueses a exclusividade
para aprisionar negros para servir ao reino lusitano, que D.Sebastião
decretou, em 1559, autorização para a captura de pretos
na África Setentrional, mais ou menos onde hoje estão
Moçambique, Congo e Angola, para servissem à lavoura de
cana-de-açucar em Pernambuco e na Bahia. Depois vieram os homens
de Benin e de outras paragens do lado de lá do Atlântico.
A natural rebeldia contra os que lhes tiravam a liberdade de ser gente
envolveu os irmãos de cor em episódios vultosos, como
o Quilombo dos Palmares, adindo a adesão dos brancos à
luta libertária, a exemplo da vedação do tráfico
negreiro (Lei Eusébio de Queiroz – 1850), Lei do ventre
Livre (1871) e do pioneirismo de Mossoró, banindo a escravidão
negra do seu território em 1883.
Formal e geral libertação ocorreu com a Lei áurea
de 1888. Problema resolvido? Necas!
Continuou a escravidão social e econômica, ditada pelos
preconceitos e pelo descaso estatal para com os egressos daquela situação
infernal. Ainda hoje temos as favelas cariocas como uma chicotada na
face da Nação, lembrando que somos todos responsáveis
pelo que ali ainda ocorrer, mormente pela nossa omissão. Até
torcemos o rosto ou desligamos a TV quando más notícias
sopram daquelas bandas.
Para completar o nosso remorso, somos testemunhas de um drama contemporâneo
que repete a sina secular do negro em nosso País. Trata-se da
imigração irregular de cidadãos africanos, que
aqui chegam como ratos, escondidos nos porões dos navios que
demendam da África devastada pela guerra civil e por adversidades
climática. Vezes quando descobertos, são arremessados
ao mar como objetos indesejáveis, noutras vezes, de sorte aparentemente
melhor, chegam à terra firme e são negociados como mão-de-obra
barata para a mesma lavoura canavieira que foi inaugurada pelos seus
antepassados há centenas de anos. Num caso e noutro o destino
é comum e cruel: o cárcere, decorrente do ingresso clandestino,
até que se opere a expulsão (a regra) ou o refúgio
político (a exceção). Até quando?
A resposta não parece fácil, tamanha é a rede de
problemas que teima em perguntar a negra escravidão no Brasil,
apesar do esforço das organizações de afrodescendentes
e da vitória individual de muitos pretos no seio da nossa sociedade,
galgando pontos de destaque, como os Ministros Gilberto Gil (da Cultura)
Marina Silva (do Meio Ambiente) e Joaquim Barbosa (do Supremo Tribunal
Federal).