Língua e Literatura

in Seminário do Projeto Câmara nos 500 Anos
Idioma e Soberania - Nossa Língua, Nossa Pátria
03/11/2003

Por

Lygia Fagundes Telles

 

Meus amigos, duas palavras apenas sobre o vídeo aqui projetado. Creio que tenho de dar um esclarecimento. Esse vídeo foi feito pelo meu filho Gofredo Telles Neto, no começo da década de 80, quando eu tomava posse na Academia Brasileira de Letras. A assistente de Gofredo Telles Neto é a filha de Glauber Rocha, Paloma Rocha. Vocês viram que foi um vídeo bastante revolucionário, jovem, diferente dos tradicionais documentários em torno dos escritores. Eu inclusive aparecia em alguns lances — eu também já fui jovem — na juventude, remando, jogando maçãs, ou laranjas, lá sei eu o quê eu estava jogando para alguém. O meu próprio filho apareceu pequenino, de macacão e com um chapelão e no meio de um jardim. Estávamos numa fazenda. Esse vídeo foi premiado em Brasília e me agrada muito, porque foi feito justamente desrespeitando, a palavra talvez seja essa, toda aquela linha tradicional dos documentários em torno dos escritores. Aliás, deixem-me dizer-lhes que a freqüência — a sala repleta todos os dias — a esse belíssimo seminário dirigido e inventado por Aldo Rebelo, é naturalmente o prêmio maior, a recompensa maior a tanto esforço.

Voltando ao que eu dizia, os documentários em torno dos escritores em geral mostram muito o escritor sentado. Escritor não é assim. Escritor é assaltado pelos seus demônios e pelos seus anjos também. Então, toda essa aflição, essa turbulência, tudo isso de um certo modo apareceu nesse documentário, no momento em que — vocês estão lembrados — há duas vozes que não se chocam, mas se comunicam e se separam. É justamente a divisão nossa, no cotidiano. A divisão do ser. A divisão dessa condição humana que somos nós, que pretendemos muitas vezes o equilíbrio, a calma. Pretendemos muitas vezes aquela serenidade, mas de repente vem aquele assalto. As personagens vivem como nós mesmas, como nós mesmos, os escritores. As personagens têm vida própria. Elas exigem um lugar ao sol. Elas são muitas vezes arrogantes. As personagens muitas vezes vêm me cobrar:

— Escuta, você me tirou no romance As Meninas. Você me matou.

— Não, não matei, Ana Clara", viciada em drogas. Não, você precisava morrer.

— Eu tinha tanta coisa interessante para dizer e você não deixou.

As personagenes vêm tomar satisfações. As personagens batem à porta, segundo Pirandello, exigindo um papel, exigindo uma destinação. Agora o escritor tem de ser livre e as pessoas também. Sartre abominava a condenação das personagens em relação à destinação. As personagens criam vida própria e tomam suas rédeas, mas cuidado, hein! Elas não podem tomar uma liberdade excessiva. De certo modo, o escritor tem de agarrar as rédeas e — ele — ter a liberdade de conduzir. Mas sem truncar essa espontaneidade que faz parte da nossa natureza.

Eu queria começar este depoimento desalinhavado. Eu não tenho inveja, nunca consegui ter inveja de nada, nem de ninguém, mas às vezes fico encantada quando vejo professores, os professores que por aqui passaram, com tamanha disciplina e nitidez, exporem suas idéias. Eu sou um pouco tumultuada. Eu peço desculpas, mas é assim que sou. O ficcionista não tem essa disciplina. Eu escrevi um livro chamado Disciplina do Amor, mas me disseram que amor não tem disciplina. Eu disse: "Tem. Uma certa disciplina o amor tem".

Digamos que eu fiquei encantada com a disciplina, com a nitidez e, pelo menos, a aparente tranqüilidade com que os professores aqui expuseram suas idéias sobre a língua portuguesa. Eu serei uma pouco mais tumultuada, mas, enfim, vocês não entender.

Ficcionista é outra raça. E depois, nós, ficionistas, como escreveu Santo Agostinho em A Arte de Viver em Tempos de Catástrofe, "estamos vivendo num tempo difícil". Eu tenho paixão por Santo Agostinho. Nós estamos num planeta enfermo. Então, nós temos de conservar o máximo dentro de nós mesmos uma certa paz interior para podermos dizer isto. Pelo menos o que estou dizendo neste instante. E começo fazendo uma homenagem, mas uma homenagem muito apaixonada, a esse escritor, pregador e educador do século XVII e que se chamou padre Antônio Vieira. Nascido em Lisboa, menino veio com os pais, desembarcou em Salvador, Baía de Todos os Santos, freqüentou o seminário, o colégio jesuíta. A paixão de Antônio Vieira pelo Brasil sempre me comoveu, porque eu o considero o primeiro grande escritor da língua portuguesa: padre Antônio Vieira. E nisso estou partilhando da opinião de Fernando Pessoa, que, mais de trezentos anos depois, considerava também padre Antônio Vieira como o mais exemplar, o mais extraordinário poeta — poeta, hein! — poeta e prosador da língua portuguesa. Eu teria então, antes e acima de tudo, de fazer essa homenagem a padre Antonio Vieira.

Ainda mais o nosso querido amigo João Alves das Neves disse: "Padre Antônio Vieira serviu com tanto empenho a Portugal e o Brasil que os confundiram num só, apesar de separados ou unidos pelo Atlântico".

A paixão do padre Vieira era o Brasil, sem esquecer Portugal. Eu me apaixonei também por esse prosador, por suas Cartas e seus Sermões. E estou acompanhada, repito, nesse meu empolgamento pelo poeta maior Fernando Pessoa, que afirmava que lia a obra de Vieira em prantos. Ele se emocionava e chorava.

Há ainda a famosa frase que hoje corre pelo mundo todo, que já ultrapassou todas as fronteiras: "Minha pátria é a língua portuguesa". Quem a teria inspirado para Fernando Pessoa? Vieira. "Minha pátria é a língua portuguesa". É uma coisa deslumbrante, porque ele amou o Brasil e amou Portugal com o mesmo amor, de um mesmo ser que habita o chão, chão este dificílimo. Estávamos, já disse, no século XVII. Vieira nasceu em 1608, em Lisboa, e morreu no Brasil já velho, com 87 anos. Mas ele viveu mais de cinqüenta anos, com pequenas incursões, no Brasil. Por quê? Ele se apaixonou pela causa maior dos índios e dos negros. Foi realmente o primeiro abolicionista que tivemos. E tanto ele lutou pela causa dos negros e dos índios que não foi canonizado! Ele não podia ser canonizado! Ele foi perseguido, inclusive sofreu a prisão da Inquisição. Por quê? Ele era arrogante, ele desafiava, ele lutava pelos direitos humanos, os tais direitos humanos hoje tão desrespeitados na nossa pátria e em todo, parece, planeta enfermo. Vieira foi o primeiro batalhador por esses direitos, vivendo num planeta tão difícil, com tantas dificuldades no cotidiano, ao menos ele quis dar ao homem — fosse ele negro, amarelo, "azul", pobre, rico, não interessa — a dignidade que esse ser merece e que de fato não tinha na época. O índio e o negro eram escravizados. Tanto que Castro Alves, e estou vendo aqui no plenário o Aldo Rebelo, que tem paixão por Castro Alves — já vou falar melhor sobre ele — também foi abolicionista. Aliás, a poesia lírica de Castro Alves talvez seja mais bela do que a poesia social. Eu acredito. A poesia lírica dele era extraordinária. Contudo, a poesia social é a que nos interessa neste instante. Política e socialmente falando, é a poesia que interessa a um país, com perdão, do Terceiro Mundo.

Então, eu queria dizer que a paixão minha pelo padre Vieira, que vivia entre Portugal, sua pátria amada, e o Brasil, tem raízes mais profundas, porque o padre Antônio Vieira descobriu uma coisa extraordinária, sobre a qual ninguém falara ainda. Descobriu o inconsciente. Ah, o inconsciente! O que é o inconsciente? É aquela coisa velada, aquela coisa escondida que cada um tem e que no discurso o Diabo Mudo — olha o diabo mudo! — ele revelou. O diabo mudo, a inconsciência, a inconsciência, a inconsciência.

Tantos anos depois, o pai da Psicanálise, Freud, viria a falar nessa inconsciência. Um dia, talvez, eu possa voltar aqui e, então, poderei dizer a vocês mais tranqüilamente o que me fundamenta nessas idéias que me parecem ditas de maneira desalinhavada. Mas vocês têm linha e agulha. Vocês vão costurar o que estou dizendo. A costura fica por conta de vocês. Então, o Diabo Mudo seria a fonte da revelação ao inconsciente que Freud, Freud e tal!, descobriria depois, mas seguindo a influência — eu ouso dizer isto — de padre Antônio Vieira.

Meu tema é a "Língua e Literatura". Quando entrei para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, eu li um soneto de Olavo Bilac e fiquei impressionadíssima. Eu era uma jovem, jovensíssima. É incrível como eu já fui jovem! Eu preciso rever mais esse documentário do meu filho que pegou flagrantes meus com o pai dele, que foi meu professor na Faculdade de Direito no Largo de São Francisco, Gofredo Telles Júnior. Eu me casei duas vezes. Gofredo Telles Júnior foi o meu primeiro marido. Divorciei-me dele e me casei depois com Paulo Emílio Salles Gomes, o fundador da primeira escola de cinema em Brasília. Além desses flagrantes, há outros ainda que poderiam ter sido incluídos. É incrível! Como é possível uma pessoa ter sido tão jovem.

Então, quando eu entrei para a Faculdade de Direito, eu descobri Olavo Bilac, parnasiano. Descobri Olavo Bilac e fiquei muito impressionada com este verso: "

Ultima flor do Lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, esplendor e sepultura".

Ah, eu fui falar com meu pai:

— Pai, eu não quero ser escritora numa língua que é esplendor e sepultura. Eu não quero escrever nessa língua. Por que mamãe não foi para a Europa?

Olha a alienada. Justamente a alienação, a vontade do Primeiro Mundo, a fascinação do Primeiro Mundo, de outras línguas, de outras terras, outras gentes.

— Por que você não mandou mamãe para Paris? Eu nascia lá e tal e escreveria em francês. Ou então para Londres, e eu escreveria em inglês.

Meu pai me passou o maior pito. Meu pai era um homem bastante sonhador, meio desgarrado, instável. Eu herdei dele a incapacidade para a vida prática. Eu não sou boa na vida prática, no cotidiano. Ele era um homem sonhador. Acho que sonho é o que nos alimenta e o que nos sustenta e o que nos faz seguir em frente. O sonho, o sonho! Meu pai era um sonhador. Eu devo ter herdado dele essa capacidade de sonhar. Então, ele disse:


Menina, você não sabe de nada! Que horror! A língua portuguesa é deslumbrante.

Falou muito sobre a língua e depois disse:

— Esse soneto você leu mal, porque tem um verso no qual Bilac diz em relação à língua: 'Amo-te assim, desconhecida e obscura'.

E meu pai disse ainda:

— Este é o amor deslumbrante, o amor verdadeiro. Você tem que amar a sua língua assim: desconhecida e obscura.

Eu levei aquele pito enorme, enfiei a viola no saco, como se dizia antigamente, e comecei a escrever. E o meu amor pela língua foi crescendo à medida que eu escrevia. Passei os anos na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco escrevendo. De repente eu fiquei tão feliz de me apoderar da palavra, e me apoderar da palavra como eu me apoderava, digamos, quando eu andava a cavalo, quando menina. Eu gostava muito de fazenda, do campo. Passei minha infância em cidades do interior do estado de São Paulo. Eu cavalgava, eu sentia a palavra: era o meu cavalo, cavalo indócil. Às vezes empinava, mas ia! Com aquela liberdade, aquela força com que eu ia naquele cavalo, eu queria assim agarrar as palavras. Amo-te assim, desconhecida e obscura.

Adiante ainda diz Bilac:

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

de virgem selvas e de oceano largo.

Amo-te, ó rude e doloroso idioma.

Tudo isso eu fui aprendendo mediante um próprio amor que foi crescendo em mim por esta língua que eu desdenhei no começo e pelo qual de repente eu me apaixonei. E termina Bilac:

Em que da voz materna ouvi meu filho,

em que Camões chorou no exílio,

amargo o gênio sem ventura e o amor sem brilho.

Esse soneto de Bilac foi, digamos, o começo do meu amor, da minha paixão pela língua portuguesa.

Eu devo dizer ainda que esse amor foi aprofundado nos meus anos de Faculdade de Direito. É uma pena que hoje as escolas literárias — por exemplo, a escola romântica, a escola parnasiana de que justamente Olavo Bilac fazia parte, a qual sucedeu a escola romântica — é uma pena que as escolas literárias não sejam mais estudadas no Brasil. É uma pena! Justamente no pórtico de mármore da Faculdade de Direito Largo de São Francisco estão inscritos três nomes:

Álvares de Azevedo, Castro Alves, Fagundes Varela. Nenhum dos três completou o curso de Direito. Alvares de Azevedo, meu patrício paulista, morreu com 21 anos. Ele dizia:

Se eu morresse amanhã, viria ao menos

Fechar meus olhos minha triste irmã;

Minha mãe de saudades morreira

Se eu morresse amanhã!

Com 21 anos esse menino morreu sem completar o curso na Faculdade de Direito. Lá está o nome dele no pórtico da escola, em mármore: Álvares de Azevedo. Castro Alves, baiano, morria com 24 anos; Fagundes Varela, com 33 anos morreu de beber. Era a escola romântica. É curioso. Preciso dizer isso a vocês. Fazendo uma conferência no Rio de Janeiro, muitos depois de formada, sobre Álvares de Azevedo, o poeta Carlos Drummond de Andrade sentou-se na primeira fila e depois veio e me disse: "Lygia todos eles morreram tão moços!"

O mais velhote deles foi Gonçalves Dias, mas morreu, se não me engano, com 41 anos. Carlos Drummond de Andrade, aquele poeta admirável, me disse: "Eu vou dar um nome para essa escola, a Escola Romântica brasileira: a Escola de Morrer Cedo" . Ah, que lindo! A Escola de Morrer Cedo. É lindo isso!

Eu me lembro de que uma vez, na Faculdade ainda, dei uma entrevista, e me perguntaram:

— Seus poetas amados?

Eu disse:

— Álvares de Azevedo, Castro Alves, Fagundes Varela, enfim...

Mas o rapaz me disse:

— Lygia, você deve falar que seu poeta predileto é Maiakovski, poeta russo.

— Mas eu não li Maiakovski ainda.

— Mas fale, porque calha bem.

Começava já naquele tempo remoto, tempo dos dinossauros, na Faculdade de Direito, essa invasão, a substituição dos nossos valores por valores de terras mais importantes do que a nossa, de nomes mais importantes do que os nossos.

— Mas eu não li Maiakovski.

— Não faz mal. Você tem que dizer que o poeta maior é Maiakovski.

Mais tarde eu li Maiakovski, grande poeta, mas não deixei atrás dele os meus poetas amados. Não deixei atrás de Maiakovski os meus poeta da juventude.

Eu me lembro, depois de formada, das minhas incursões, das minhas viagens pelo interior do estado de São Paulo. Eu era uma escritora. Realmente o meu sonho. Eu já disse que sou sonhadora. Meu sonho era ajudar o povo que eu via, o povo que eu amo tanto, meu povo, minha gente. Eu tenho paixão pelo meu povo. Esse povo de Renato Russo. Eu fiquei sabendo que esse compositor, morreu jovem, Renato Russo é de Brasília. Olha, que extraordinário! Renato Russo disse essa frase deslumbrante: "O povo brasileiro é alegre, mas não é feliz". Que bonito isto: "É alegre, mas não é feliz".

Veio ao Brasil o cineasta italiano Zefirelli. Esteve nos iates, nas ilhas deslumbrantes, no Copacabana Palace. Voltou à Itália e lhe perguntaram:

— O que você achou do Brasil?

— É um país riquíssimo e felicíssimo.

É justamente o turista, o turista que vem, vê as mulheres lindas, as garotas de Ipanema... Não sabem da nossa realidade.

Renato Russo sabia. "O povo brasileiro é alegre, mas não é feliz".

Vocês vêem que eu vou e volto, mas se eu não voltar, meu querido amigo Jorge Couto, aqui a meu lado, do amado Instituto Camões de Portugal, vai me puxar pela manga.

Eu ia pelas cidades no interior fazendo o quê? Pregando isto: o dia em que o Brasil tiver mais escolas e creches ele terá menos hospitais. Eu vou repetir. o dia em que o Brasil tiver mais escolas e creches ele terá menos hospitais. E agora nesta fase tão terrível que estamos vivendo, numa fase de medo, de tamanha aflição e ansiedade, eu acrescentaria: o dia em que o Brasil tiver mais escolas e creches ele terá menos hospitais e menos prisões — a violência.

Vocês vêem que há uma harmonia. Eu vou chamar a atenção. Na homenagem que prestei ao padre Antônio Vieira, aquele pregador e educador que tentou, tentou com todas as forças... foi preso, foi agredido. Os próprios jesuítas foram contra ele. São coisas da natureza humana, que é tão difícil e complicada. Não vou tentar explicar agora, porque ninguém explica. É inexplicável. O padre Antônio Vieira, educador e missionário, .saía com aquela cruz aqui, a sotaina, de peito aberto. Não foi canonizado nem será. Ele não pode ser canonizado, um subversivo. Eu estou usando agora uma expressão tão comum no período da ditadura militar. Subversivo! Padre Antônio Vieira foi nosso primeiro subversivo. Lindo! Desgrenhado, velho, morreu lutando, como educador e pregador.

O tempo é curto e eu preciso terminar. Eu queria apenas dizer a importância do latim na nossa língua. Eu me apaixonei por latim. Eu me apaixonei pela língua latina porque eu percebi, então, a nossa raiz, a nossa força. Justamente padre Antônio Vieira com a sua fides et ratio, com a sua fé e a sua razão, lutava por um povo.

Deixem-me fazer esse parêntese. Um dia eu estava na Alemanha, e um alemão, naturalmente ignorante das nossas coisas, da nossa literatura, disse: "Vocês, escritores brasileiros, estão muito alienados". Ousou dizer isto. "Vocês estão vivendo num país tão difícil e vocês não escrevem sobre essas dificuldades". Aí, eu pedi a palavra! Eu pedi a palavra e disse: Meu senhor, mostra isso que o senhor não conhece a literatura brasileira. Evidentemente a literatura brasileira trata, sim. da nossa realidade! Eu não faço outra coisa do que, nos meus contos e romances, tratar das coisas do meu país como testemunha e participante que eu sou desta sociedade e deste tempo. Eu tenho delatado tudo, como meus colegas escritores também têm delatado. Porém, evidentemente, não vamos fazer isso de uma forma aberta, senão não seríamos lidos. Nós não seríamos lidos! Nós temos que mascarar as coisas, pelos caminhos.

Tenho um conto chamado Seminário dos Ratos. Nesse conto eu faço uma delação, uma delação das autoridades que ficam sempre dizendo: "A coisa está sob controle". Não está! Não está! Eu estava num seminário anti-raticida e havia ratos demais em São Paulo. Havia tanto rato que alguém disse: "Eu estou protestando porque disseram que para cada paulista há cinco ratos. Eu tenho só quatro. Eu estou exigindo o quinto".

Em determinado instante foi engraçadíssimo, porque o presidente da mesa do seminário disse: "A situação está sob controle". Naquela hora um rato atravessou o palco. Eu achei uma maravilha aquilo. Aí eu escrevi Seminário dos Ratos. Nesse meu conto, os ratos acabam comendo, devorando, acabam com todos no seminário e se instalam na sessão, os ratos! O único que conseguiu fugir daquele horror que os ratos instalaram, caindo como nuvens, despejados de todos os buracos, foi o que entrou na geladeira. Mas bastou ele botar o dedo fora da geladeira e um rato mordeu o dedo dele. Esse, quando olhou para trás, viu o casarão onde se realizava o seminário anti-raticida todo iluminado: os ratos estavam instalados no poder.

Esses apólogos todos, essas metáfora, tudo isso que a gente escreve e faz é com um sentido. Cego é aquele que não quer ver. É impossível você explicar. Foi isso o que eu disse para o tal do alemão arrogante. E ele disse: "Ah, mas as crianças estão morrendo no Brasil". E eu disse: Esse é um mal que no mundo inteiro, meu senhor, o senhor sabe que existe. Nós temos, sim, discriminação, mas ninguém pode nos acusar. 'Atire a primeira pedra', conforme dizia Jesus Cristo em relação à adultera. Ninguém pode atirar a primeira pedra. O senhor, então, está enganado. Eu peço desculpas, mas o senhor está enganado, porque o escritor brasileiro está, sim, dentro da sua realidade, dentro da sua sociedade e do seu tempo.

Voltando à língua portuguesa. Hoje, por exemplo, tantas vezes, e ontem também, nesses dias todos, eu ouvi tanto a expressão que Eça de Queirós dizia em relação ao português aqui falado: " O brasileiro usa açúcar no português". Eu diria "sal". (Risos.) Com todo respeito por Eça de Queirós, escritor da minha maior admiração, mas é sal o que nós pomos. E isso está certo, porque com esse sal, pondo de lado qualquer idiotice de modéstia, talvez estejamos acrescentando, enriquecendo a língua primeira, a língua mater, a nossa verdadeira língua, que é o português. Eu repito sempre isso: É o português, sim. Escrevemos o português, mas o estilo é o estilo brasileiro. É o nosso estilo que pomos.

Eu me lembro de que há muito tempo foi publicado um romance meu — faz uns duzentos anos; tudo na minha vida faz duzentos anos — em Portugal: Ciranda de Pedra. E o editor disse bem: "Eu vou fazer o seguinte: eu vou adequar, vou fazer com que o seu livro, que tem expressões que talvez escapem aos portugueses, entre na língua portuguesa escrita e falada em Portugal". Quando fui ler o meu livro, ele ficou outra coisa: não era nem de uma portuguesa nem de uma brasileira; não era nada. Não era nada, justamente porque é com o estilo, com este estilo nosso que talvez possamos enriquecer essa língua amada. É o estilo, é uma riqueza!

E aí entramos na literatura adiante. Vamos pular os parnasianos, aqueles poetas bem comportados que vieram depois dos românticos, daquela Escola de Morrer Cedo, descabelados todos, uns bêbados, tuberculosos outros. Gonçalves Dias! Este era indianista. Tenho paixão por Gonçalves Dias. Ele, por exemplo, era mais comportadão, fazia parte da escola romântica. Mas os outros eram todos descabelados, viviam em correrrias, em serenatas pelos cemitérios, com aquelas capas pretas, evidentemente uma influência byroniana. Byron, Byron! A diferença é que Byron tomava seus vinhos, suas bebidas deslumbrantes e tal em taças. Mandou fazer uma taça com um crânio humano e o pé da taça era de ouro. Coisa linda! Agora os nossos... Eu gosto de um verso de Álvares de Azevedo: "Escravo, enche essa taça". Perdão. Álvares de Azevedo bebia só leite. Inclusive Mário de Andrade diz que ele morreu...

Acabou o tempo. Álvares de Azevedo morreu virgem, segundo Mário de Andrade. Ele falava tanto em mulheres, mas quem as teve todas foi Castro Alves. Ele falava tanto em bebida e quem bebeu tudo foi o Fagundes Varela. Fagundes Varela, sim, podia dizer: "Escravo., enche essa taça". Então, dá idéia de ser aquela coisa! Não era. A taça era um copo vagabundo de cachaça, de alumínio em que ele bebia: Escravo, enche essa taça!

Em seguida à escola romântica, a escola parnasiana, escola bem comportada, que era uma espécie de resposta aos descabelados, aos sem-gravata e aos sem-colete da escola anterior, e depois a famosa Semana de 22, a revolução modernista. E aí, fortalecendo a idéia que acabei de expor agora sobre o enriquecimento da língua, Mário de Andrade — e eu recomendo pelo menos um livro de Mário de Andrade, porque ninguém mais tem tempo de ler. Macunaíma, onde Mário de Andrade tentou e conseguiu fazer isto, no estilo dele — fez uma espécie de revolução, a revolução modernista, em relação à língua portuguesa. Tudo isso é enriquecimento. Nós não estamos deteriorando a língua, não! Nós não a estamos empobrecendo. Ao contrário, nós a estamos enriquecendo! São idéias, são presentes que o Brasil dá à língua materna na sua pureza de Camões, Fernando Pessoa, padre Antônio Vieira.

Não há tempo! Imaginem, meu tema é imenso: "Língua e Literatura". Rapidamente estou dando o que eu posso. Oswald de Andrade também tentou fazer a mesma coisa. Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, coisa deslumbrante! Ele trouxe lá dos confins de Minas todo um vocabulário estranho, aparentemente inventado. Não é invenção! As raízes estão lá. A gente procurando, as raízes estão lá. É a riqueza, é o que nós podemos dar à língua que nós amamos, à mulher amada! É o homem tentando engastar na coroa do seu amor mais uma pedra, mais um enfeite para abrilhantar a língua nativa.

Bem, vamos terminar. Não quero nem ler esse bilhete que me entregaram passando um pito. Eu queria terminar esse arrebanhado que eu fiz dizendo apenas o seguinte. Um dia volto aqui para falar sobre os meus amores, esses amores. Um dia eu ainda volto, eu prometo. Mas eu queria terminar com um poeta: Carlos Drummond de Andrade.

Antes, claro! Oh, meu Deus! Machado de Assis. Ai, aí, aí! O Niskier disse: "Eu fiz duzentas mil conferências sobre Dom Casmurro. Traiu, não traiu. Eu lá sei se traiu. Não interessa! A dúvida em relação à traição de Capitu, justamente aí está a beleza, o esplendor, o mistério de Dom Casmurro. Por exemplo, Madame Bovary, de Flaubert, dizia "Madame Bovary c'est moi" e tal. Madame Bovary era adúltera, e está acabado. Ela ia cavalgando para casa do amante, tudo bem, não tinha mistério nenhum. Capitu, não. Ai, que bonitinha! Ela escondia. É a mulher velada. É o mistério que eu amo na literatura. Capitu, justamente, o que alimenta esse livro que atravessa o tempo. Daqui a cem, duzentos anos estarão ainda perguntando: "Mas ela traiu Bentinho?" Ora, traiu ou não traiu, o que interessa? Não interessa nada!

Eu escrevi com Paulo Emílio Salles Gomes um roteiro para cinema chamado Capitu. E num determinado momento, Paulo Emílio me disse: "Ó Cuco — ele me chamava de Cuco —, "você está tomando partido do Betinho. Você está ficando com a cara do Bentinho. Agora seu nome é Cuco Bentinho". No dia seguinte eu disse:

— Não, eu não sou mais Cuco Bentinho.

— Por quê?

— Porque eu desconfio. Ela não é aquela santa, não, Paulo Emílio. Ela traiu. E o filho era do amante.

— Mudou tudo!

— Mudou tudo.

Então ele disse:

— Pára de ler esse livro. Não o leia mais, tá entendendo? Porque você não tem nada com isso. Você tem é que manter o mistério, que esse mistério é a graça, é o sal — olha o sal! — do livro de Machado de Assis.

Carlos Drummond de Andrade... Rapidamente vou encerrando, mas não posso deixar de falar nesse poeta deslumbrante. Escola de Morrer Cedo! Não é lindo? Todos morriam jovens. Lindo! Escola de Morrer Cedo! Carlos Drummond de Andrade em poucos versos disse justamente o que eu disse no vídeo projetado hoje. São versos que dizem respeito à língua portuguesa, esta língua que amamos tanto. Diz o poeta:

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser descritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intacta.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Dicionário, dicionário! Eu também tenho paixão por dicionário. Vocês deviam se apaixonar, vocês futuros escritores, poetas, prosadores. Dicionário! É uma beleza o dicionário. Às vezes tenho dúvida em relação a uma palavra e vou buscar... Eu sou humilde, humilde e paciente. A paciência e a humildade são duas virtudes do escritor. Paciência e humildade! Então eu vou ao dicionário e vejo. Será que essa palavra está boa? De repente eu encontro uma terceira ou uma quarta expressão que me agrada mais. Então eu corto aquela e a ponho de lado.

E termina o poeta — e isto é lindo!:

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

É uma beleza! É a palavra perguntando: trouxeste a a chave? Esta chave eu espero que vocês tenham guardada no coração e na razão. O escritor fides et ratio. A razão e coração. A razão apertando, controlando, fiscalizando o texto. O texto, a razão — para não dizer besteira. Mas o amor, a emoção cavalgando a palavra.

Eu queira que vocês tivessem essa chave ou, se pudesse, daria uma a cada um de vocês, professores, estudantes, não estudantes, com idade mais avançada, ou não. Eu queria que vocês pensassem nessa chave e pensassem nesse verso com o qual eu quero encerrar esse depoimentos tão desalinhavado, mas tão sincero. Vejam! Comecei com padre Antônio Vieira e termino com Camões. Este é um verso de Camões, que eu amo tanto e que justifica muitas vezes a minha vida, minha própria vida no seu cotidiano e no seu ofício, que é o ofício de escrever:

Eu estou em paz com a minha guerra. Eu estou em paz com a minha guerra. Repitam isso para vocês mesmos, no fundo do coração: Eu estou em paz com a minha guerra. E vocês farão esta guerra e levarão esta guerra até o fim.

Muito obrigada.