Falar Mal a Língua dos Outros
Por
Renald Bujold








Acho o texto de Eça de Queirós uma deliciosa hipérbole, um engraçado exagero, quase uma caricatura muito divertida que, afinal , ao contrário do que parece querer dizer o escritor realista, constitui uma hábil ilustração e uma defesa original das vantagens de falar “sem vergonha” várias línguas estrangeiras, mau grado as dificuldades e até a impossibilidade, de falá-las sem sotaque ou acento, tão bem como a sua própria língua. Mas, como em todas caricaturas, há uma parte de verdade: a persistência em falar línguas estrangeiras trai a identidade nacional, tanto ou mais que trocar uma bandeira por outra!

Primeiro exagero: Desde logo, o leitor dar-se-á conta de que o perfeito poliglota a que Eça de Queirós se refere, é um caso raro. Acho que, no que às línguas estrangeiras diz respeito, necessário se torna falá-las com o grau de perfeição descrita pelo autor, “ com o especial e exclusivo encanto da fala materna com as suas influências afectivas”, é uma ficção, um mito. Pode-se tentar fazê-lo com afectação como o Dâmaso dos Maias, e neste caso, a palavra “estrangeirismo” seria apropriada, mas dizer que “o poliglota nunca é patriota” e falar de “desnacionalização”, de “abdicação da dignidade nacional”, duma “lamentável sabujice com o estrangeiro”, da perdida de “toda a individualidade nativa”, de “corpos de pobre que cabem bem na roupa de toda a gente”, de um “instrumento de alta escroquerie”, etc., é uma inchação verbal, uma caricatura. O leitor sorri e não toma tudo isso a sério, nem considera verdadeiro o pensamento do autor.

Pelo contrário, acho que Eça utiliza, de maneira humorística e paradoxal, atrvés do seu semi-heterónimo (?) Fradique Mendes, o pretexto de um suposto orgulho da língua materna e da pátria como a motivação de base para encorajar os tímidos a falar, até com um acento horrível e muitas calinadas no vocabulário e na sintaxe, outras línguas europeias. Talvez seja só para se desculpar da sua própria falta de habilidade no domínio das línguas estrangeiras que fala? Além disso, pelo que se sabe da obra e da vida de Eça de Queirós, tal patriotismo exaltado não fazia parte dos seus valores. É verdade que sendo ele próprio poliglota e cosmopolita poderia estar a falar do seu caso, mas duvido que cole às características de Eça a etiqueta de "patriota radical"! Penso que se trata de uma caricatura de si próprio. Ele faz do só “possível”, um “dever” patriótico: um homem só “deve” (pode) falar. com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra.” “Deve (pode) falar mal, orgulhosamente, nobremente mal” as línguas dos outros. A justaposição reiterada de um advérbio e de um adjectivo de sentido tão oposto, é caricatura. Daí resulta que o leitor, neste caso, eu próprio, fica convencido das vantagens dos esforços para aprender e falar tão bem quanto possível, outros idiomas, e o Português em particular. Como a língua está intimamente ligada à cultura, falar as línguas dos outros é adquirir outros modos de pensar e de sentir, é sentir-se mais à vontade nas cidades estrangeiras, caminhar pelas suas ruas e sentir-se mais “em casa” e menos estrangeiro, deixar o isolamento “das outras raças” para partilhar a cultura dos outros, são vantagens que eu pessoalmente vivi quando viajei pelas cidades de Portugal.

 

Texto produzido, a partir da proposta de trabalho contida na Ficha: A Dissertação