QUEM PASSOU ALÉM DO BOJADOR PASSOU ALÉM DO DOR

Os Descobrimentos Portugueses

Conto para os meus netos

Por
Renald Bujold








Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!

In A Mensagem de Fernando Pessoa

M- Então, perguntou o menino: Porque é que Portugal partiu um dia para o mar, velas á solta, em busca do desconhecido ?

A- Quem te contou isso, menino?- respondeu o avô- São visões de poeta! Nunca as coisas se passaram assim.

M- Mas porque? A professora, na aula de Geografia disse que foi o Infante D. Henrique que...Por isso, chamam-no.. o...Gator..., o Aligator!

A- O avô sorriu, acariciando ternamente a cabeleira loura do neto : N-A-V-E-G-A-D-OR, corrigiu-o, e, depois, riu sem se poder conter: o Infante Dom Henrique nunca navegou além de Marrocos e já tinha morrido e os seus ossos estavam mais brancos do que o meu cabelo quando as grandes descobertas tiveram lugar...

M- O menino ficou com os seus olhos enormes, inteligentes, abertos, olhando para o avô com estupefacção.-

A- Se quiseres e se tiveres tempo, vou contar-te a verdade: vou contar-te como tudo sucedeu...

M- Conta, conta, disseram duas vozes em coro, porque, entretanto, a irmã gémea que brincava, ali mesmo, num canto da sala, não tinha perdido pitada sobre o que o avô estava a contar ao irmão e também queria ouvir a história. Na verdade, as histórias do avô eram sempre apaixonantes..., ao ponto de fazer esquecer o cheiro apetitoso da sopa que a avó, a lume brando, confeccionava na cozinha...

Estava um dia frio, de chuva e vento. Sacudiam ambos, ritmicamente, as vidraças. Apesar disso, sentia-se na sala um silêncio de igreja. O momento tinha algo de ritual sagrado.

O avô, sentado na sua antiga poltrona de baloiço com os meninos sentados no chão, cheirou o cachimbo, riscou um fósforo e acendeu lentamente uma boa cachimbada – porque isso acontecia há muito tempo, quando os avôs ainda fumavam o cachimbo, eu era o menino e o avô era o meu avô - , e depois de algumas baforadas que encheram a sala de uma fumaça odorante e ondeante, o avô alisou a barba grisalha e começou a contar a história seguinte com a voz tão forte e grave que se ouvia por toda a casa:

A- Naquele tempo, há muitos muitos anos, até séculos, pouco depois de terem vencido os muçulmanos, os Portugueses não tinham mais nada para fazer, senão coser meias e sonharem, comentou o avô, sem que soubesse muito bem porque estava a distorcer propositadamente a verdade histórica . Tinham ouvido dizer que para o Oriente, numa “das Índias”, porque pensavam que havia várias Índias, vivia um grande imperador cristão, o Preste João, imensamente poderoso e rico, que era ao mesmo tempo preste e rei. Era das Índias donde provinham as cobiçadas especiarias, o marfim, a seda, as pedras preciosas Faziam parte do império do Preste João, toda a espécie de monstros e outros seres lendários...

M- Monstros? exclamaram-se em uníssono os meninos, cujo interesse tinha dobrado O cão que se tinha acostado ao lado das crianças despertou olhando-os com um ar de reprovação. Quanto ao gato, ronronava no tapete em frente à casa.

A- Monstros, sim, repetiu o avô. No entanto, havia mais...Também do lado do poente, os Portugueses daquela época ouviram falar de ilhas, reinos, dioceses lendárias, terras fabulosas, povoadas de bichos monstruosos... no imenso Mar Tenebroso e para além dele.

M- O Mar Tenebroso? Perguntou o neto. E foram eles para lá, para ver?

A- Sentiam-se atraídos, mas contavam-se terríveis histórias com monstros, perigos, obstáculos...O Mar Tenebroso era uma lenda transmitida ou forjada pelos Árabes que descrevia um oceano habitado por seres estranhos e mergulhado numa escuridão constante, onde todos os navios naufragavam nas ondas medonhas ou nas águas ferventes...Além disso muitos estavam convencidos que a terra era plana, um pouco como a parte de cima da mesa redonda da sala de jantar: se viajassem longe de mais encontrariam o fim do mundo e os barcos cairiam num abismo sem fundo. Os amedrontados marinheiros hesitavam pois em ir para Sul ou para Ocidente, por terem medo de não mais voltar. Para Sul, havia como que uma fronteira natural, o Cabo Bojador. A muitos quilómetros de distância do Cabo ouvia-se o rugido das vagas altas que batiam contra os penhascos; a costa era perigosa. Havia nevoeiros espessos...Os marinheiros pensavam que chegavam ao Mar Tenebroso e ao fim do mundo e quando avistavam o longo promontório do Cabo, penetrando com profundidade pelo mar, ficavam convencidos que ali era o limite, a barreira, o fim do mundo, o abismo...

O meninos fixavam o avô com os olhos, como que suspensos nos seus lábios, mas não diziam nada. Lá fora, como que despertando com a história do avô, o vento e a chuva tinham-se intensificado e batiam nas vidraças com mais violência.
O avô como falando a si mesmo recitou com um tom declamatório:
A- “Quem passou além do Bojador passou além do dor”
M- O que é?, perguntaram os meninos em coro.
A- Um poema.
M- Quem o escreveu?
A- Pessoa
M- Pessoa! riram ás gargalhadas as crianças
A- O avô sorriu e prosseguiu, sério: Fernando Pessoa...
M- Então, Pessoa transpôs o Bojador, disse a menina.
A- Não, o poeta Pessoa, viveu muito, muito tempo depois, respondeu o avô sorrindo, nem uma pessoa, mas muitas pessoas transpuseram o Bojador, porque o Bojador como o Mar Tenebroso, era mais ou menos uma coisa na cabeça.., e dizendo isso, o avô coçou a cabeça com o dedo. Na verdade havia ventos muitos perigosos, tempestades, naufrágios, tribos selvagens e ferozes, e até piratas*, mas monstros ou outros seres fabulosos não se vislumbravam. Pouco a pouco, os Portugueses, e outros na Europa daquele tempo, especialmente os comerciantes e os pescadores, movidos por razões fortes, venceram o medo do desconhecido e aventuraram-se cada vez mais longe para sul e para ocidente, amansando pouco a pouco o seu terror aos terríveis Bojador e Mar Tenebroso.
M- Porque? Como foi isso?, perguntou o menino muito admirado. Eu nunca teria podido ser marinheiro: teria tido muito medo dos Monstros ou dos piratas!
A- O ouro, a atracção pelo ouro, repetiu o avô com um ar misterioso. O ouro era o motivo mais poderoso para vencer o medo. As minas de ouro do continente produziam cada vez menos do precioso metal, À Europa faltava-lhe. Precisava-se de ouro, em particular, para comprar as mercadorias preciosas que chegavam do Oriente pelas vias terrestres: especiarias, madeira e pedras preciosas, marfim, seda. O ouro era necessário ao florescimento do comércio.

M- E o ouro encontrava-se no mar? perguntou a menina com a sua ingenuidade habitual, o que pôs o irmão às gargalhadas.

Cortando ao meio as gargalhadas do neto, o avô beliscou ternamente a bochecha da neta e disse-lhe:

A- A ideia não é tão estúpida: o ouro não ficava no mar, mas o mar, o caminho do mar, era a solução.

M- Mas como, avô ?, interrompeu o menino, arrependido, da sua curiosidade natural, superando o seu orgulho varonil.

A- Lembram-se do Preste João e do seu reino fabuloso e riquíssimo? perguntou o avô aos netos, que aprovaram da cabeça. Os Portugueses não sabiam exactamente onde ficava este reino fabuloso mas estavam muito ansiosos e desejosos por encontrar um monarca tão poderoso e rico. Pensavam que o reino ficava numa das Índias, na Ásia, mas não muito longe, porque neste pensava-se que esta parte do norte da África era já a Ásia. Mais tarde soube-se que o lendário reino cristão do Preste João correspondia ao reino da Etiópia e o Preste João foi identificado como o soberano da Etiópia.

Os irmãos intensificaram a atenção quando ouviram o avô falar da África e da Etiópia, porque nas últimas aulas de geografia a professora tinha falado precisamente do continente africano.

A- Além disso, prosseguiu o avô, sentindo a necessidade de acelerar um pouco o ritmo da narração porque o cheiro apetitoso da bela sopa que a sua mulher terminara, era cada vez mais irresistível e já se ouvia na cozinha alguns sons familiares que indicavam que alguém estava a pôr a mesa- os Portugueses pensavam que existia ouro algures em África, e a Sul do reino do Preste João, porque as caravanas árabes ou dominadas pelos Árabes traziam-no para o mundo muçulmano. E isto, porque os Portugueses imaginaram que, percorrendo a costa ocidental da África em direcção ao Sul, os seus navios acabariam por contornar o continente africano e o mundo árabe e encontrariam um caminho para chegarem ás jazidas auríferas e ao reino do Preste João. Mas o continente africano era muito mais extenso do que eles pensavam, e é assim que respondendo ao apelo irresistível do ouro, os Portugueses aventuraram-se, cada vez mais para sul, ultrapassando mesmo o terrível Bojador, até que um dia, em 1488 exactamente, um deles, de seu nome, Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança, contornou a África e assim abriu um caminho marítimo para a Ásia e para as verdadeiras Índias: China, Índia, Japão, etc. Mas isso é outra história.

M- Mas, avô, perguntou, a menina, a quem o ouro havia exercido sempre um grande fascínio: E os Portugueses encontraram o ouro?

A- Encontraram, sim, minha filha. Muito Ouro muitas outras riquezas. Contornando a costa ocidental de África, os Portugueses, como os Espanhóis, tinham encontrado ilhas e arquipélagos, com terras férteis para o cultivo de trigo, de que precisavam também, e particularmente madeira para a construção de barcos e outros usos. Aliás um destes arquipélagos, é hoje uma região autónoma de Portugal que se chama Madeira. Além disso, prosseguiu o avô, com uma certa tristeza na voz, os Portugueses explorando as costas da África e penetrando no interior do continente encontraram outro tipo de ouro: o ouro preto...

M- O ouro preto! exclamaram em uníssono os meninos que nunca tinham ouvido falar nem visto o ouro preto.

A- Isso é uma história muito triste e uma vergonha nacional, comentou o avô, mostrando no tom da voz e na expressão do rosto um real desgosto que os netos perceberam bem. Eu chamo ouro preto, às centenas de milhar, até milhões de Negros, homens jovens, mulheres, crianças, que os Portugueses e outros nações da Europa, arrancaram, com a cumplicidade dos Árabes e também de outros Negros, das costas e do interior de África, para tornarem-nos em escravos para os suas plantações nos arquipélagos e no Brasil, porque, como provavelmente sabem já, outros navegadores tinham viajado para ocidente onde tinham também descoberto terras com muitas riquezas e recursos naturais, e precisava-se de escravos para as explorarem. O transporte dos escravos fazia-se por comerciantes sem escrúpulos e em condições inumanas e terríveis: um grande número deles morria durante a viagem. Os Portugueses usavam os escravos para as suas próprias plantações, mas também as vendiam e isso deu origem a um comércio muito mais lucrativo do que o comércio do ouro. É por isso que de “ouro preto.”

O silencio fez-se na sala mais intenso, pesado. Sentia-se que o avô e os dois netos partilhavam uma mesma emoção. Muito profunda, uma mesma indignação, a mesma dor, de gente simples e sensível, face a uma injustiça irreparável. Depois de uma pausa comprida, foi o menino que rompeu o silêncio de uma voz hesitante e trémula:

M- E, avô, o...Infante Henrique..., também ele teve....fez...o comércio do...do ouro preto?

O avô compreendeu, por esta pergunta do neto, que a sua primeira resposta à pergunta do menino sobre o Infante Henrique, dito o Navegador, tinha ferido o neto na admiração que tinha por este herói que toda a nação portuguesa venera, pelo papel que se lhe atribui nos Descobrimentos portugueses. Então o bom avô quis atenuar um pouco a impressão que tinha dado ao neto a de que Henrique o Navegador era mais ou menos um impostor.

A- Não, menino, é provável que o Infante tenha tido escravos, como todas as famílias nobres da época, mas não penso que tenha sido ele mesmo a fazer esse comércio infame...que se desenvolveu sobretudo após a sua morte.. O Infante Dom Henrique foi uma personagem muito influente e importante da sua época, mas não a mais rica ou a mais poderosa Era um dos filhos do rei João I e recebeu de seu pai o governo perpétuo de todo o Algarve e os direitos sobre a pesca em toda a região. Além disso, entrou numa ordem religiosa, a Ordem de Cristo, cujo comando lhe foi entregue em 1420. Essa Ordem não lhe permitia casar-se, mas podia armar uma frota... Como ele geria uma casa opulenta e tinha muitos empreendimentos políticos e militares, precisava de aumentar o seu património e as receitas, constantemente em maré baixa...Mais do que descobrir novas terras, o que interessava ao Infante era a descoberta das minas de ouro de África! Comparado com numerosos outros aristocratas e nobres do seu tempo, o seu interesse pela navegação e os descobrimentos teve mais a ver com uma motivação para o comércio e as necessidades e o enriquecimento da sua casa, do que com o ideal da expansão e do fortalecimento de Portugal. É provável que o Infante Dom Henrique não tenha navegado muito pessoalmente, mas ele fez muito para tornar possível a navegação e o comércio. Em Sagres, reuniu á sua volta estudiosos de matemática, astronomia, ciência náutica, além de físicos hebraicos e peritos comerciais italianos; fez construir no promontório de Sagres a sua famosa escola de navegação que desempenhou um papel essencial no desenvolvimento da capacidade de navegar á distância que permitiu mais tarde as grandes Descobertas.

O menino pareceu ter ficado satisfeito com a comprida explicação do avô, porque embora o mito do herói Infante, o Navegador se tivesse muito esvaído, a figura do Infante Henrique ainda lhe parecia ter tido um papel importante na história do seu país, até lhe parecia agora, sem o lustro do mito, tomar uma dimensão mais humana. Como o irmão guardava o silêncio, foi a menina que o rompeu com uma pergunta que parecia reter desde vários minutos:

M- E...o senhor Rei..., permitia que arrancassem da África os coitados dos escravos negros?

A- Sim, netinha, respondeu o avô sem que tivesse necessidade de lhe esconder a verdade, mas olhando a neta com muita ternura, os reis permitiam-no. Para os reis como para toda a gente da época, os negros eram pagãos, ou “infiéis”, como os muçulmanos, e não tinham direitos; muitos, interrogavam-se até se os negros tinham uma alma, se eram verdadeiros seres humanos e tratavam-nos como animais... Desde os tempos muito recuados em que os muçulmanos do Norte de África tinham invadido e ocupado o território que abarca o Portugal de hoje, todos os descendentes do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, se queriam investidos da missão divina de combater os infiéis, de repeli-los para fora de Portugal, e até de persegui-los nas suas próprias terras para estender não só o reino de Portugal, mas também o reino de Deus....Eram como os Cruzados que combateram para libertar a Terra Santa do domínio dos Infiéis. Este motivo foi um dos mais poderosos para dar um impulso à expansão e aos Descobrimentos, Por fazerem isso, os Reis de Portugal e dois outros reinos de Europa, obtinham o apoio do Papa que era o monarca mais poderoso da Europa, a quem todos os outros reis dos países católicos prestavam vassalagem.

M- Então porque é, avô, perguntou a menina, depois de uma reflexão profunda, porque é que Portugal ficou sempre tão pobre?....

Neste momento, a porta da cozinha abriu-se e a avó saiu, aureolada por um aroma tão bom que a menina se calou e, voltando-se na sua direcção; dirigiu-se directamente para o grupo, dobrou-se para beijar os netos: Têm fome, não é?, perguntou-lhes, olhando o marido com um olhar cúmplice. Basta de histórias hoje. Vamos comer. E enlaçando os dois netos pelos ombros, a avó seguida do avô, dirigiu-os para a cozinha onde os esperava uma sopa bem quente e bem fumegante.

3 de Fevereiro de 2002