Família e Natureza

Os poemas seleccionados nesta página retratam temas gerais da vida em família tradicional, a vida na natureza de um povo agrícola, que se ocupa com o tempo, a chuva ou a sua falta, a seca que significa fome, o mar, e os animais. O poema Rapariga, de Ana Paula Tavares de Angola, dá um retrato bonito da vida familiar de uma rapariga nas tradições da sua tribo. Onésimo Silveiro de Cabo Verde, no poema As Águas, descreve em cores e movimentos sensuais a chegada violenta da chuva que provoca um ressurgimento da natureza e do homem. Ruy Duarte de Carvalho, no poema A Seca, descreve numa forma dialógica - perguntas e respostas - a miséria e fome numa aldeia sem chuva. No poema Aí, o Mar, de Hélder Muteia de Moçambique, o mar é o lugar de lembranças dos segredos da sua mocidade, dos contos dos seus avós e do seu amor. Neste poema as quadras têm rimas alternadas (abba), provavelmente com a intenção de acentuar a regularidade das marés que levam e trazem os segredos do poeta.
As Águas
de
Onésimo Silveiro

A chuva regressou pela boca de noite
Da sua grande caminhada
Qual virgem prostituída
Lançou-se desesperada
Nos braços femintos
Das árvores ressequidas!

(Nos braços famintos das árvores
Que eram os braços famintos dos homens...)
Derramou-se sobre as chagas da terra
E pingou das frestas
Do chapéu roto dos desalmados casebres das ilhas
E escorreu do dorso descarnado dos montes!

Desceu pela noite a serenar
A louca, a vagabunda, a pérfida estrela do céu
Até que o olhar brando e calmo da manhã
Num aceno farto de promessas
Ressurgiu a terra sarada
Reassumando a fartura e a vida!

Nos braços das árvores...
Nos braços dos homens...

Rapariga
de
Ana Paula Tavares

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarram-me já às costas, a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho

Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi -

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto
a falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada
concedeu-me
favor das suas tetas úberes.

A Seca
de
Ruy Duarte de Carvalho

Novembrina Solene
Seu Zuzé. As tuas vacas, como estão?

Longe daqui
subimos os morros
Fomos procurar
a água que resta
do ano que passa.
Senhora Luna
a farinha?
Tarda a chuva
seco o milho
A lavra não vai medrar.Chimutengue, meu vizinho
então por cá?
Pois que vim te visitar
te avisar
que o meu gado vai passar
aqui por perto
Tarda a chuva e é preciso
procurar
o que lhe dar de comer
o que lhe dar de beber
O capim está ficar negro
está na hora de mudar.
Imigrante Silva, a tua mulher?Está mal.
Que é do leite pra lhe dar
a carne pra lhe engordar?
E os filhos?Estão magrinhos
doentados
vão ficar igual com o pai
Que é da escola pra lhes dar
sapatos pra lhes calçar
ofício pra lhe ensinar?
Dunduma amigo
companheiro Chipa
Zeca, Ernesto, Calembera.
Olhai pelo gado.
Protegei os pastos.
Olhai pela vida das fêmeas
e pela saúde dos machos.

Aí, o Mar
de
Hélder Muteia

As palavras que desenhei na areia
O mar as levou em lembrança
Os meus segredos de criança
O mar os contou à sereia.
As conchas do mar também ficaram
Com os meus segredos do anoitecer
Tudo o que os meus avós me sussurraram
Ainda estava por tecer.
Os estilhaços da minha infância
Ficaram emulsionados na força da água
Os versos feitos em minhas mágoas
Também ficaram em turbulência.
O mar levou o meu amor
A filha do gra-marinheiro
Pois ela partiu primeiro
Sem escutar o meu clamor.