Crónica de um Neném Raptado por Engano,
por um Miúdo Desajeitado

(extrato da edição de 27 de março de 1925 do “The Gazette” e novamente publicado na edição de 31 de março de 2012 do mesmo periódico)
por
Benoit Pelletier

Começo esta minha crónica com a tradução de uma notícia publicada no Jornal anglófono, The Gazette, de março de 1925, cujo original se encontra no lado esquerdo desta página.

Os inspetores do posto de Montfort prenderam ontem um garoto de doze anos que tinha roubado um carrinho de bebé, sem se aperceber que um neném de sete semanas estava dormindo lá dentro. O moço encontrou o carrinho em frente de uma casa, sita no número 14 da avenida Oldfield, endereço da mãe do bebé, a senhora L. A. A. Bernard.O garoto foi até à rua Aqueduct onde tentou vender o carrinho à senhora Pharand, que mora no número 211 dessa rua. Ele oferecia-lhe o carrinho por 1.25 dólar, disse a senhora Pharand aos inspetores. Ela aproximou-se para examiná-lo e foi assim que descobriu o neném. Pediu ao jovem para esperá-la um momentinho e foi rapidamente para dentro de casa para telefonar à polícia. Quando voltou para o passeio, o garoto e o neném tinham desaparecido. A senhora Pharand andou à procura do miúdo, tendo-o encontrado uns minutos depois, sempre empurrando o carrinho, só que desta vez o carrinho estava vazio.
O agente Patry achou o neném uma hora depois num monte de lixo no terreiro do C.N.R, na rua School, perto da rua Saint-Félix. O bebé não parecia ter sofrido com esta experiência inédita. Levado para o posto de polícia aí ficou palrando com alegria até à chegada da mãe ansiosa que viera reclamá-lo.

Perguntar-me-ão: - O que o levou a repescar uma notícia tão antiga? E eu responder-lhes-ei, com uma pergunta: - Como poderia eu ficar indiferente a uma notícia que me remeteu para uma das minhas primeiras recordações que, aliás, já dela falei na minha coletânea de lembranças, que redigi, no âmbito da cadeira de Português, Comunicação Oral e Escrita.
Como, então, referi, o acontecimento relatado na notícia, é similar a um acontecimento que protagonizei. Talvez o assunto da notícia acima reproduzida tenha provocado uma
lenda urbana que correu até à época em que viveu a minha mãe. Lendas de nenéns raptados e vendidos nos Estados Unidos, de tráficos internacionais de bebés, sei lá! Isso pode explicar, em parte, a angústia da minha mãe quando um jovem se aproximou do carrinho onde eu estava deitado e que muito me impressionou.

Sobre essa notícia inusitada do ano de 1925 tenho-me colocado muitas questões até hoje sem resposta. Por que a mãe deixou o bebé no carrinho lá no passeio, fora da sua vigilância? Talvez a mãe não quisesse acordar o seu filho. Ela pensou que o podia deixar lá fora até que se pôs a chorar ao despertar. Hoje, tudo isso pode parecer-vos uma inaceitável falta de cuidado e de sentido de responsabilidade. No entanto temos de ter em conta que tudo isso ocorreu em 1925 e nessa época as preocupações com a prudência eram muito diferentes das de agora. Segundo os lugares, ao longo do tempo e do avanço do conhecimento, a noção de prudência e o sentido de responsabilidade evoluíram. A título de exemplo, lembro-vos a forma como, nos anos noventa do século XX, os adultos fumavam - e pareciam chaminés! - na presença das crianças, sem que alguém se preocupasse com os efeitos do fumo secundário inalado pelas crianças de então!

Outra pergunta: - Por que o garoto roubou o carrinho sem se aperceber da presença do neném? É fácil imaginar que esse garoto agiu sem refletir, seguindo o impulso do momento. Ele viu o carrinho abandonado no passeio e começou a empurrá-lo. Andando, ele decidiu vendê-lo. Mas, porquê, apenas um dólar e vinte e cinco cêntimos? O que se podia comprar nessa época com um dólar e vinte e cinco cêntimos? Para quem ou por que razão esse dinheiro era importante para o rapaz? Seria tão simplesmente para satisfação das suas necessidades egoístas? Para comprar um objeto cobiçado por ele ou para ajudar a sua família? E ainda mais uma pergunta: - Por que se desembaraçou o garoto do bebé deitando-o no lixo? Depois do seu encontro com a senhora Pharand e da descoberta do bebé, o garoto, por certo, assustou-se e o pânico fê-lo fazer esse gesto cruel de abandonar o neném no lixo. Existe, claro, a possibilidade de que esse menino fosse mau de verdade, mas eu acho que essa probabilidade é mais remota do que a do natural gesto de pânico.

Enfim, fosse o que fosse que ficasse dessa experiência, pergunto-me sobre o que se teria passado na cabeça dessa criança, do ponto de vista psicológico. O que reteve na memória esse nenêm? Será que, como eu, ele ficou até à idade adulta com lembranças um tanto imprecisas da aventura incomum que ele viveu quando era ainda criança de colo? Será que ele está ainda vivo? Em caso afirmativo, ele terá hoje 87 anos. Seria interessante falar com ele desse assunto. Tanto mais que nessa idade vulnerável, muitas vezes, a memória imediata enfraquece em benefício da memória de eventos bem mais antigos... numa espécie de círculo de vida...


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Luís Aguilar
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