Laboratório
de Palavras
A que sabem
os livros?
João
de Mancelos
A que
sabem os livros?. Os Meus Livros, ano 8, n. 92 (Nov. 2010):
39.
No mundo
dos livros, só há dois assuntos que suscitam de
imediato o interesse
do leitor: o sexo e a comida. Vários romances exploraram,
com arte e reconhecido êxito, este binómio. Recordo,
por exemplo, “Como Água para Chocolate”,
de Laura Esquivel, ou “Julie & Julia”, de Julia
Powell, com o sugestivo subtítulo: “Um Ano a Cozinhar
Perigosamente”. Na nossa era do hambúrguer devorado
em duas dentadas, Esquivel e Powell fazem-nos salivar com as
descrições de pratos tão simples quanto
uma sopa de batata, aromática e fumegante. Ambas descobriram
receitas típicas, desvendaram sabores esquecidos, e revelaram
os truques dos grandes chefes. Porém, qual é o
segredo para cozinhar um romance sobre comida?
Antes de mais, evite as armadilhas da escrita fácil,
como os lugares-comuns, por exemplo. Um texto que lembre o rótulo
de um vinho de mesa é sempre indigesto e incipiente.
Por isso, rejeite clichés, como “precioso néctar”
(uma expressão estafada) ou “um vinho voluptuoso”
(a menos que a garrafa faça striptease).
Não centre a descrição apenas no sabor,
pois toda a comida apela aos cinco sentidos: a cor vermelha
da sopa de beterraba; o gosto agridoce de um iogurte; o gelado
numa tarde escaldante de praia; o estalido dos flocos de milho
e frutos secos na tijela de leite; o aroma matinal de um café
turco, acabado de fazer. Um bom autor deve ser
convincente, explorando vários sentidos para oferecer
ao público uma fatia generosa da realidade que invoca;
caso contrário, deixa-o a mastigar papel e tinta.
Aconselho o escritor aprendiz a não se ficar pelas descrições,
mas a explorar a potencialidade simbólica e a dimensão
cultural dos alimentos. O romance de Esquivel, por exemplo,
usa a gastronomia como pretexto para abordar temas tão
diversos quanto a sabedoria dos antepassados ou o prazer de
criar.
Também na autobiografia “Em Busca do Tempo Perdido”,
de Marcel Proust, o autor prova o poder evocativo dos alimentos.
No início, o narrador trinca uma guloseima típica
da região: “levei aos lábios uma colherada
de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena.
Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as
migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci (…). Invadira-me
um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua
causa”. Uma simples dentada numa madalena desencadeia,
primeiro, uma recordação nostálgica da
infância, logo seguida de centenas de outras, espraiadas
por sete volumes.
Alguns estudantes preguiçosos prefeririam que Proust
se tivesse engasgado na madalena; mas os fãs não
hesitam em visitar a localidade de Combray-Illiers, para degustarem
tais guloseimas. Compreendo-os: já me aconteceu ir a
Sintra provar as célebres queijadas, motivado pelas descrições
de Eça de Queirós. Como afirmava o jornalista
Abbot Joseph Liebling, o primeiro requisito para escrever sobre
comida é possuir bom apetite. E tinha razão: os
grandes livros são o melhor aperitivo. Por isso, devoremo-los,
sem dieta nem culpa, até à última página
.