O Ano da Morte de Ricardo Reis
de José Saramago,
lido por Luís Aguilar
Reportagem de Vitália Rodrigues
Fotos de Alice Mascarenhas


Luís Aguilar apresenta Saramago e a sua obra O Ano da Morte de Ricardo Reis na sala Pedro da Silva do Consulado-Geral de Portugal em Montreal


Aspecto geral da assistência (cerca de cinquenta pessoas)


Georges Bastin, director do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade de Montreal, entre a esposa Mayra Parra e Vitália Rodrigues, autora desta crónica e Assistente de Língua Portuguesa na Universidade de Montreal.

ALGUNS DOCUMENTOS VISUAIS EXIBIDOS NA CONFERÊNCIA


Carta do céu de Ricardo Reis. Clique para aumentar.


Ricardo Reis em amena cavaqueira com Fernando Pessoa
! Uma constante na obra de José Saramago


Ricardo Reis, pormenor do mural de Almada Negreiros
na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1958).

Sofro, Lídia, do medo do destino

Sofro, Lídia, do medo do destino.
Qualquer pequena coisa de onde pode
Brotar uma nova ordem em minha vida,
Lídia, me aterra.

Qualquer coisa, qual seja, que transforme
Meu plano curso da existência, embora
Para melhores coisas o transforme,
Por transformar
Odeio, e não o quero. Os Deuses dessem
Que ininterrupta minha vida fosse
Uma planície sem relevos, indo
Até o fim.

A glória embora eu nunca haurisse, ou nunca
Amor ou justa ’stima dessem-me outros,
Basta que a vida seja só a vida
E que eu a viva.

Ricardo Reis 26-5-1917

Rua do Alecrim
onde se situa o Hotel Bragança
que albergou Ricardo Reis


Largo Camões e Estátua de Eça de Queirós, sistematicamente invocadas na obra de José Saramago

Adamastor no Alto de Santa Catarina, de onde Ricardo Reis contempla o espectáculo do mundo ou segue ansiosamente os desenvolvimentos da revolta dos marinheiros? A PVDE acredita na segunda hipótese e, por isso, segue-o de muito perto.


O contratorpedeiro «Dão» onde se deu uma revolta abortada contra o Estado Novo e Salazar. Ricardo Reis é suspeito de envolvimento político. Os Marinheiros da Revolta são conduzidos à prisão e irão inaugurar o Tarrafal.

 


Realizou-se a 13 de Janeiro de 2010, das 18 às 20h30, na sala multiusos Pedro da Silva do Consulado-Geral de Portugal em Montreal, uma sessão do Círculo de Leitura Europeu, integrada nas actividades do European Book Club e do projecto Lisez L'Europe, dedicada à análise e discussão da obra de José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis.

Nesta sessão, com uma audiência recorde de participantes, Luís Aguilar, professor da Universidade de Montreal e docente do Instituto Camões, começou por parafrasear José Saramago no Salon du livre de Paris: - Obrigado por serem tantos!

Luís Aguilar, mais em formato de conferência do que propriamente de animação de uma sessão de um círculo de leitura, apresentou José Saramago, Prémio Nobel de Literatura de 1998 e a obra mencionada, no seu contexto real e ficcional.

Ao contrário do que fizera com os seus outros principais heterónimos (Álvaro de Campos e Alberto Caeiro) Fernando Pessoa não estabeleceu uma data de óbito para o seu semi-heterónimo Ricardo Reis, nascido a 19 de Setembro de 1887 no Porto, embora a sua carta do céu aponte Lisboa como o local de nascimento. Entrando no jogo literário do poeta de A Mensagem, José Saramago estabelece o ano de 1936 como o ano da morte do poeta das odes sáficas ou alcaicas. Quis assim José Saramago que Ricardo Reis morresse um ano depois da morte de Fernando Pessoa. Um ano de grande impacto político para a Península Ibérica e determinante para o avanço do fascismo na Europa e no mundo, que culminará com a consolidação de Salazar e do Estado Novo em Portugal, o início da Guerra Civil Espanhola, a gradual ascensão de Hitler e os preparativos para a II Guerra Mundial. Ano em que a Itália se apodera da Etiópia e em que Kamanev e Zinoviev são executados por ordem de Staline. Premonitoriamente Alex Carrel escreve, ainda nesse ano, O Homem, Esse Desconhecido e Eugene O'Neill ganha o prémio Nobel de Literatura. Charlie Chaplin, diverte-se e diverte as gentes com Tempos Modernos.

Ricardo Reis chega em 1936, vindo do Brasil, à chuvosa e cinzenta Lisboa, Lisbon, Lisbonne, Lissabon […] apenas um nome, aproximativamente pronunciado, para maior confusão das juvenis inteligências, com o acento próprio de argentinos, se deles se tratava, ou de uruguaios, brasileiros e espanhóis, que, escrevendo certo Lisboa no castelhano ou português de cada qual, dizem cada um sua coisa, fora do alcance do ouvido comum e das imitações da escrita.

Lisboa é o cenário onde se desenvolvem os últimos momentos da vida de Ricardo Reis que, ao entrar no hotel, na recepção, um pouco ofegante, pega na caneta, e escreve no livro das entradas, a respeito de si mesmo, o que é necessário para que fique a saber-se quem diz ser, na quadrícula do riscado e pautado da página, nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou pelo Highland Brigade, parece o princípio duma confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto, apenas.

E, para desvendar a vida de Ricardo Reis, Saramago, na opinião de Luís Aguilar, reescreve a história, cria biograficamente Ricardo Reis, parodeia tanto o heterónimo como o ortónimo Pessoa, apresenta o texto pontuado de forma a dar a ideia de escrita íntima e automática (Escreve Fernando Pessoa: Em 8 de Março de 1914, acerquei-me de uma cómoda alta e, tomando do papel, comecei a escrever de pé como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não consegui definir...) e outros níveis de intertextualidade identificados por Luís Aguilar na leitura pessoal que fez da obra do Nobel português. José Saramago descreve da maneira que se segue o tempo e o modo de escrita de O Ano da Morte de Ricardo Reis: Foi na biblioteca da escola industrial que “O Ano da Morte de Ricardo Reis” começou a ser escrito… Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista – “Atena” era o título – em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu país, pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava (José Saramago, in Discursos de Estocolmo, Caminho, 1999, pp. 23 e 24).

A Saramago teria respondido o próprio Fernando Pessoa se oportunidade houvesse, poupando tanta labuta ao aprendiz de serralheiro primeiro e ao aprendiz de escritor, depois: Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja. Claro que José Saramago está longe deste tipo de discurso, diriamos mesmo do tipo de produção literária do genial poeta português que obrigou os dicionários a cultivarem-se, se tal é possível. Pessoa, não nos esqueçamos é um genial criador de autores literários, lembra Luís Aguilar.

É o próprio José Saramago que diz que ao escrever este livro foi como se estivesse a dizer a Ricardo Reis: Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Desfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria (in Discursos de Estocolmo, Caminho, 1999, pp. 24 e 25). Saramago não se resigna a que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso, este verso cruel: "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo " .

Compreende-se pois ser enorme a distância existente entre o Ricardo Reis de Pessoa para quem o mesmo é sereno e vendo a vida à distância a que está, para quem, sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo e o Ricardo Reis de Saramago, para quem, é o mesmo actor puxado pela torrente da acção e arrastado pelos acontecimentos que vive. O que leva Saramago a perguntar a Ricardo Reis: onde é que estava quando viu a vida a essa distância? E, como consequência, é ainda maior a distância entre a Lídia das odes de Ricardo Reis, musa permanentemente inspiradora - a quem o heterónimo confessa o sofrimento e o medo do destino -, transformada em criada-vinda-de-fora-para-todo-o serviço, de quem Ricardo Reis se serve como se servirão outros hóspedes que, igualmente, lhe aquecem o rabo com os olhos, quando não com as mãos.

Aqui, a porca torce o rabo e o leitor conhecedor do universo pessoano dificilmente aceita esta descida ao chão de Lídia. Do mesmo modo se considera cínica a forma como Saramago lê Pessoa, não perdendo
a oportunidade para subtrair mérito ao poeta dos heterónimos, recorrendo quando necessário é, à falsidade, como o testemunha este troço pronunciado alto e bom som em Estocolmo, no momento em que recebia o Nobel de Literatura de 1998:

Que outras lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI, que compôs as Rimas e as glórias, os naufrágios e os desencantos pátrios de “Os Lusíadas”, que foi um génio poético absoluto, o maior da nossa Literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Leram esta última frase? Fernando Pessoa nunca se considerou o tal Super-Camões. Diz Pessoa: Somos portugueses que escrevem para a Europa, para toda a civilização; nada somos por enquanto, mas aquilo que agora fizermos será um dia universalmente conhecido e reconhecido. (in Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, p. 121). É este o espírito que anima Pessoa sobre a urgente necessidade da emergência de um Super-Camões e não, como o pretende Saramago, um epíteto que o próprio Pessoa cola, narcísicamente, a si próprio.

E o Assim, tudo acaba em silêncio e poesia terminou em animada discussão e convívio, à volta de uma petiscada acompanhada de vinho do Porto que, generosamente, o Dr. Fernando Demée de Brito, cônsul-geral de Portugal em Montreal, ofertou. Luís Aguilar teve ainda a oportunidade de agradecer, mais do que a petiscada, a diplomacia de proximidade e de valorização dos vectores culturais da acção diplomática, por que o recém-chegado cônsul vai pautando a sua acção.

A propósito desta conferência LER e VER:

Testemunho de Luís Aguilar (vídeo)

JOSÉ SARAMAGO: OBRA (de) NOMEADA por Luís Aguilar

Lisez L'Europe - Círculo de Leitura Europeu – Portugal in Instituto Camões

O Ano da Morte de Ricardo Reis, por Joaquim Eusébio in LusoPresse

Ler ainda:

Carta a Josefa de José Saramago

Diaporama com citações de Saramago