Realizou-se a 13 de Janeiro
de 2010, das 18 às 20h30, na sala multiusos Pedro da
Silva do Consulado-Geral de Portugal em Montreal, uma sessão
do Círculo de Leitura Europeu, integrada nas actividades
do European Book Club e do projecto
Lisez L'Europe, dedicada à análise e discussão
da obra de José
Saramago, O
Ano da Morte de Ricardo Reis.
Nesta sessão, com uma audiência
recorde de participantes, Luís
Aguilar, professor da Universidade de Montreal e docente
do Instituto
Camões, começou por parafrasear José
Saramago no Salon du livre de Paris: - Obrigado por serem
tantos!
Luís Aguilar, mais em formato
de conferência do que propriamente de animação
de uma sessão de um círculo de leitura, apresentou
José Saramago, Prémio Nobel de Literatura de 1998
e a obra mencionada, no seu contexto real e ficcional.
Ao contrário do que fizera
com os seus outros principais heterónimos (Álvaro
de Campos e Alberto Caeiro) Fernando
Pessoa não estabeleceu uma data de óbito para
o seu semi-heterónimo Ricardo Reis, nascido a 19 de Setembro
de 1887 no Porto, embora a sua carta do céu aponte Lisboa
como o local de nascimento. Entrando no jogo literário
do poeta de A Mensagem, José Saramago estabelece
o ano de 1936 como o ano da morte do poeta das odes sáficas
ou alcaicas. Quis assim José Saramago que Ricardo Reis
morresse um ano depois da morte de Fernando Pessoa. Um ano de
grande impacto político para a Península Ibérica
e determinante para o avanço do fascismo na Europa e
no mundo, que culminará com a consolidação
de Salazar e do Estado Novo em Portugal, o início da
Guerra Civil Espanhola, a gradual ascensão de Hitler
e os preparativos para a II Guerra Mundial. Ano em que a Itália
se apodera da Etiópia e em que Kamanev e Zinoviev são
executados por ordem de Staline. Premonitoriamente Alex Carrel
escreve, ainda nesse ano, O Homem, Esse Desconhecido
e Eugene O'Neill ganha o prémio Nobel de Literatura.
Charlie Chaplin, diverte-se e diverte as gentes com Tempos
Modernos.
Ricardo Reis chega em 1936, vindo
do Brasil, à chuvosa e cinzenta Lisboa, Lisbon, Lisbonne,
Lissabon […] apenas um nome, aproximativamente pronunciado,
para maior confusão das juvenis inteligências,
com o acento próprio de argentinos, se deles se tratava,
ou de uruguaios, brasileiros e espanhóis, que, escrevendo
certo Lisboa no castelhano ou português de cada qual,
dizem cada um sua coisa, fora do alcance do ouvido comum e das
imitações da escrita.
Lisboa é o cenário onde se desenvolvem os últimos
momentos da vida de Ricardo Reis que, ao entrar no hotel,
na recepção, um pouco ofegante, pega na caneta,
e escreve no livro das entradas, a respeito de si mesmo, o que
é necessário para que fique a saber-se quem diz
ser, na quadrícula do riscado e pautado da página,
nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto,
estado civil solteiro, profissão médico, última
residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou
pelo Highland Brigade, parece o princípio duma confissão,
duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto
se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é
descobrir o resto, apenas.
E, para desvendar a vida de Ricardo Reis, Saramago, na opinião
de Luís Aguilar, reescreve a história, cria biograficamente
Ricardo Reis, parodeia tanto o heterónimo como o ortónimo
Pessoa, apresenta o texto pontuado de forma a dar a ideia de
escrita íntima e automática (Escreve Fernando
Pessoa: Em 8 de Março de 1914, acerquei-me de uma
cómoda alta e, tomando do papel, comecei a escrever de
pé como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e
tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja
natureza não consegui definir...) e outros níveis
de intertextualidade identificados por Luís Aguilar na
leitura pessoal que fez da obra do Nobel português. José
Saramago descreve da maneira que se segue o tempo e o modo de
escrita de O Ano da Morte de Ricardo Reis: Foi na biblioteca
da escola industrial que “O Ano da Morte de Ricardo Reis”
começou a ser escrito… Ali encontrou um dia o jovem
aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista
– “Atena” era o título – em que
havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo
tão mau conhecedor da cartografia literária do
seu país, pensou que existia em Portugal um poeta que
se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo,
porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido
um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes
de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que
chamava heterónimos, palavra que não constava
dos dicionários da época, por isso custou tanto
trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava (José
Saramago, in Discursos de Estocolmo, Caminho, 1999,
pp. 23 e 24).
A Saramago teria respondido o próprio
Fernando Pessoa se oportunidade houvesse, poupando tanta labuta
ao aprendiz de serralheiro primeiro e ao aprendiz de escritor,
depois: Se me disserem que é absurdo falar assim
de quem nunca existiu, respondo que também não
tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu
que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja. Claro
que José Saramago está longe deste tipo de discurso,
diriamos mesmo do tipo de produção literária
do genial poeta português que obrigou os dicionários
a cultivarem-se, se tal é possível. Pessoa, não
nos esqueçamos é um genial criador de autores
literários, lembra Luís Aguilar.
É o próprio José
Saramago que diz que ao escrever este livro foi como se estivesse
a dizer a Ricardo Reis: Eis o espectáculo do mundo,
meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Desfruta,
goza, contempla, já que estar sentado é a tua
sabedoria (in Discursos de Estocolmo, Caminho,
1999, pp. 24 e 25). Saramago não se resigna a que um
espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso,
este verso cruel: "Sábio é o que se contenta
com o espectáculo do mundo " .
Compreende-se pois
ser enorme a distância existente entre o Ricardo Reis
de Pessoa para quem o mesmo é sereno e vendo a vida
à distância a que está, para quem,
sábio é o que se contenta com o espectáculo
do mundo e o Ricardo Reis de Saramago, para quem, é
o mesmo actor puxado pela torrente da acção e
arrastado pelos acontecimentos que vive. O que leva Saramago
a perguntar a Ricardo Reis: onde é
que estava quando viu a vida a essa distância? E,
como consequência, é ainda maior a distância
entre a Lídia das odes de Ricardo Reis, musa permanentemente
inspiradora - a quem o heterónimo confessa o sofrimento
e o medo do destino -, transformada em criada-vinda-de-fora-para-todo-o
serviço, de quem Ricardo Reis se serve como se servirão
outros hóspedes que, igualmente, lhe aquecem o rabo com
os olhos, quando não com as mãos.
Aqui, a porca torce o rabo e o leitor conhecedor do universo
pessoano dificilmente aceita esta descida ao chão de
Lídia. Do mesmo modo se considera cínica a forma
como Saramago lê Pessoa, não perdendo a
oportunidade para subtrair mérito ao poeta dos heterónimos,
recorrendo quando necessário é, à falsidade,
como o testemunha este troço pronunciado alto e bom som
em Estocolmo, no momento em que recebia o Nobel de Literatura
de 1998:
Que outras lições poderia eu receber de um
português que viveu no século XVI, que compôs
as Rimas e as glórias, os naufrágios e os desencantos
pátrios de “Os Lusíadas”, que foi
um génio poético absoluto, o maior da nossa Literatura,
por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se
proclamou como o Super-Camões dela? Leram esta última
frase? Fernando Pessoa nunca se considerou o tal Super-Camões.
Diz Pessoa: Somos portugueses que escrevem para a Europa,
para toda a civilização; nada somos por enquanto,
mas aquilo que agora fizermos será um dia universalmente
conhecido e reconhecido. (in Páginas Íntimas e
de Auto-Interpretação, p. 121). É
este o espírito que anima Pessoa sobre a urgente necessidade
da emergência de um Super-Camões e não,
como o pretende Saramago, um epíteto que o próprio
Pessoa cola, narcísicamente, a si próprio.
E
o Assim, tudo acaba em silêncio e poesia terminou
em animada discussão e convívio, à volta
de uma petiscada acompanhada de vinho do Porto que, generosamente,
o Dr. Fernando Demée de Brito, cônsul-geral de
Portugal em Montreal, ofertou. Luís Aguilar teve ainda
a oportunidade de agradecer, mais do que a petiscada, a diplomacia
de proximidade e de valorização dos vectores culturais
da acção diplomática, por que o recém-chegado
cônsul vai pautando a sua acção.
A
propósito desta conferência LER e VER:
Testemunho de Luís Aguilar (vídeo)
JOSÉ
SARAMAGO: OBRA (de) NOMEADA por Luís Aguilar
Lisez
L'Europe - Círculo de Leitura Europeu – Portugal
in Instituto Camões
O
Ano da Morte de Ricardo Reis,
por Joaquim Eusébio in LusoPresse
Ler ainda:
Carta
a Josefa de
José Saramago
Diaporama
com citações de Saramago