Mia Couto (Prémio Camões 2013) pensatempos em língua portuguesa, cara a cara, com lusófonos e lusófilos de Montreal

reportagem de

Luís Aguilar

 

Mia Couto, laureado com o Prémio Camões de 2013, um dos mais relevantes escritores de língua portuguesa, moçambicano, esteve em Montreal, a convite do Festival de Literatura Metropolis Bleu, onde participou em vários eventos em que os Estudos Portugueses e Lusófonos da Universidade de Montreal, em colaboração com o Consulado–geral de Portugal em Montreal e com o patrocínio do Camões, Instituto da Cooperação e da Língua, tiveram participação ativa. Inscrito na programação do Festival de Literatura Metropolis Bleu realizou-se um encontro-debate com Mia Couto, intitulado Cara a Cara que teve lugar na livraria Las Américas, sita no 2075 da rua St Laurent em Montreal, no dia 27 de abril, das 19 às 20.30 horas.


Fotografia de Francisco Hermosin

Ao longo de uma hora e meia, Mia Couto, mais do que falar da sua carreira literária, como estava anunciado, partilhou pensatempos contou pequenas histórias que fazem abensonhado o seu trajeto literário e falou da sua infância, do seu trabalho como biólogo numa das maiores regiões de preservação ambiental de África, o que o leva a olhar o mundo de um determinado ângulo e a encontrar afinidades entre a Biologia e a Literatura. Revelou a forma como emergiu o pseudónimo Mia, ligado ao seu convívio com a felinidade. Era mais um gato entre as dezenas de gatos que rodeavam a casa e o acompanhavam no seu transcurso existencial. Eu era assim uma espécie de morcão, como dizem os portugueses do Norte. Dado que nessa altura a escola não estava tão psicologizada pude passar impune. Se fosse hoje talvez tivesse sido catalogado de atrasado mental. E, analogizando, observou que o mesmo poderia passar-se com Fernando Pessoa, cuja genialidade teria sido coertada e, provavelmente, internado. Nem Mia Couto, nem Fernando Pessoa nem o modesto autor desta reportagem, passaram a infância no Portugal de Salazar; passaram-na em África, onde a margem de liberdade era, apesar de tudo, muito maior. Mas Mia Couto, ao contrário do que muitos pensam, viveu sempre em Moçambique, é filho de Moçambique. Pai de Moçambique, corrige o escritor: tenho estado a parir essa nação que é mais nova do que eu e participei na criação do hino de Moçambique. Como querem que, neste contexto, seja filho?

Vamos dar início a esta sessão, começando por fazer-lhe uma pergunta simples: - Por que razão você escreve? começa a animadora Eloísa Aquino por perguntar a Mia Couto, que responde em contramão: - Ora aí está a pergunta mais difícil que me poderia fazer e para a qual não tenho resposta. Irmã gémea desta viria a ser feita uma outra: - Pensa nos destinatários quando escreve? - Não. Quando, nesse momento solitário em que escrevo, os leitores aparecem, é na forma de fantasmas.

Mágoas pairantes por duas guerras, uma colonial e outra civil, deixaram marcas, mas as violências que geralmente as caracterizam, essas estão amortecidas, apaziguardadas. E se, neste cara a cara, alguma coisa se falou da guerra civil, da guerra colonial nem uma palavra. Será porque aquela apagou esta, porque mais violenta? foi uma das questões que colocamos a Mia Couto, a par de muitas outras numa entrevista que fizemos para a Montreal Magazine e que publicaremos noutro espaço. - Ninguém hoje quer lembrar a guerra, ninguém se quer deitar no divã psicanalítico para atiçar memórias ou delas fazer a respetiva catársis. A memória é feita de mentira, mesmo a História é fruto de uma ficção. Andamos a inventar passado, a afinar e refazer factos.

Conhecendo as perguntas que Mia Couto faz à língua portuguesa havia que inventariar questões que, porventura, a língua portuguesa pode colocar a Mia Couto. As diferentes obras do escritor têm uma característica comum: as palavras vestem-se com a pele de África e a escrita está salpicada de neologismos, muitos deles deliciosos: mar-me-quer, pensatempos, abensonhados, suspendurados, abreviaduto, sulbúrbios, admiradouro, barrilgudo e milhentos outros. Trata-se de encontrar uma especificidade para a língua portuguesa que hoje se fala em Moçambique e que convive com centenas de outras línguas? Uma variante moçambicana da língua portuguesa? - perguntámos. Mia responde: - Não tenho quaisquer propósitos desse género. Também não me invade qualquer obsessão por bem falar a língua. Se quiserem, adianto já que quem aqui fala pior português sou eu. Não me assalta qualquer intuito patriótico. Os moçambicanos namoram a língua portuguesa sem a pretensão de falar bem. A língua portuguesa é uma língua permissiva que dá vontade de namorá-la. Às vezes desconseguimos. Viu? Eis um verbo inventado pelo povo que, quando quer dizer que o jornal é recente ou que o carro ficou fora da garagem se expressa, respetivamente: Este jornal ainda trabalha ou o carro dormiu fora. A sua pátria também é a língua portuguesa? questionámos. - A minha pátria é a minha língua portuguesa. Muitos são os que usam e abusam da frase ícone de Fernando Pessoa "Minha pátria é a língua portuguesa", para fins patrióticos. Mas quando Fernando Pessoa a escreveu foi num contexto antipatriótico: "Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente". Para sermos mais precisos, diremos que o contexto em que Bernardo Soares escreveu esse texto, pela pena de Fernando Pessoa, foi o da rejeição às alterações ortográficas, vulgo o Acordo Ortográfico de então, sendo Pessoa fiel à ortographia anterior a 1911, em que se havia revolucionado a ortografia da língua portuguesa, retirando-a da obediência greco-latina e pseudo etimológica ou etimológica em ordem à sua simplificação. Há mais de cem anos como hoje, as pessoas a escreverem em duas ortografias e as mesmas guerras de alecrim e manjerona. Mia Couto responde, a quem lhe perguntou, o que pensava do AO: Há tantas outras coisas que permitiriam uma aproximação dos falantes de português que não vejo muita utilidade ter-se começado por aí.

E a pergunta impunha-se, vinda de uma plateia largamente constituída por portugueses: e a sua relação com Portugal? Portugal é muito maior do que aquilo que os meus pais me contaram. Há tanta diversidade e, também muitas semelhanças com muitas coisas que se passam em Moçambique, como a confiança e a solidariedade entre as pessoas. - responde Mia Couto.

Não queremos fechar esta reportagem sem assinalar alguns absurdos em torno deste tão conseguido cara a cara, em flagurante contraste com o desconseguimento da organização do Festival Metropolis Bleu. Ao terminar a sessão realizada, recorde-se, numa livraria, foi um doce ver todos os participantes numa correloucaria para comprar não uma mas várias obras do autor, tanto mais que estava prevista na programação, uma sessão de autógrafos após terminado o encontro com Mia Couto. Na livraria não havia um só livro de Mia Couto disponível, nem em português, nem em francês, nem em inglês. Onde colocaria Mia Couto o seu rabisco? Numa garrafa de vinho, pediu uma das nossas estudantes. Não fossem alguns montrealenses estudiosos e admiradores de Mia Couto e a sessão teria ficado no anonimato e a pouca informação publicada na imprensa era facilmente desmentida porque falsa ou exagerada. Mia Couto vendeu 25 milhões de livros e é o escritor de língua portuguesa mais conhecido no mundo. Dez por cento é já muito bom.
Pondo de lado estas circuntristezas, como diria Guimarães Rosa, esta sessão tão mal programada acabaria dando certo, atingindo-se a perfeição: uma sala acolhedora, a abarrotar de gente, ouvindo Mia Couto expressar-se em português, para lusófonos e lusófilos, contando-lhes as travessias do cabo das tormentas, mas também as do da boa esperança.

 

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