UMA LÍNGUA E DIFERENTES CULTURAS

Por

MANUEL ALEGRE

Comunicação apresentada em Madrid, no quadro do
Programa Cultural da Expolíngua
Março de 2003

Não vou dizer que minha pátria é a língua portuguesa. Primeiro, porque esta frase, quase sempre divorciada do contexto poético em que Pessoa, através do seu heterónimo Bernardo Soares, a disse, se transformou em discurso oficial da lusofonia. E eu não gosto de ver a cultura convertida em discurso oficial. Segundo, porque estou de acordo com a desmistificação exemplar feita por Eduardo Lourenço: Sem o confessarem, ou, acaso, terem bem consciência disso - os decididos apóstolos, ou antes, crentes na existência de um espaço-língua suporte de um espaço-cultura que permitisse dar um conteúdo à ideia de lusofonia - para além da constatação empírica de uma expressão de matriz lusíada - imaginam assim aceder a um Quinto Império mais acessível que o Império de Cristo pregado por Vieira ou que o Império do sonho feito com saudade do Império perdido, à Pessoa.

Prefiro falar de uma língua e diferentes culturas, para utilizar a expressão com que o escritor Álvaro Guerra, então embaixador na Suécia, baptizou um conjunto de colóquios realizados naquele país sobre este mesmo tema. Uma língua e diferentes culturas. Uma língua que é, de certo modo, inseparável de um processo histórico de criação de nações. A começar por Portugal. Não é culturalmente exacto que Portugal tenha começado na batalha de S. Mamede, nessa primeira tarde portuguesa, belíssima expressão que podia ser um verso, cujo autor por sinal é Alexandre Herculano e não, como já foi escrito, o Professor José Matoso.

Antes de ser Estado, Portugal foi trova, contar de amigo, flor de verde pinho, menina e moça de Bernardim. E também o sol é grande e o comigo me desavim, de Sá de Miranda. E sobretudo Camões, a lírica e Os Lusíadas, esse poema fundador, que é um verdadeiro acto de soberania espiritual. Como costuma lembrar Mário Cesariny, Camões escreveu o português tal como hoje o falamos. Por isso ele não é só, até certo ponto, o fundador de uma identidade cultural, é também o fundador da língua portuguesa que hoje escrevemos e falamos. O que talvez tenha levado Amílcar Cabral e, mais tarde Samora Machel a reivindicarem Camões e a dizerem claramente dito: Camões também é nosso. Antes de ser Estado-Nação, Portugal foi língua e foi poema. Essa é a verdade cultural ou, se preferirem, a verdade poética e mágica da criação de Portugal. As nações todas são mistérios, dizia Pessoa. Este é talvez o mistério de Portugal: a língua.

Mas também não se pode esquecer que Amílcar Cabral, o mais carismático dos dirigentes africanos das antigas colónias portuguesas, definiu a luta de libertação como um acto de cultura. E na verdade, antes do início da luta armada em Angola, Guiné e Moçambique, houve manifestações culturais que podem ser consideradas como fundadoras. É o caso da revista Mensagem, que é uma das primeiras expressões da angolanidade. Antes das grandes proclamações políticas, Angola já tinha de certo modo nascido da criação literária de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, António Jacinto, Luandino Vieira e outros. Como Cabo Verde estava na prosa e na poesia de Baltazar Lopes, Moçambique nos poemas de José Craveirinha, S. Tomé na escrita de Francisco José Tenreiro e de Alda Espírito Santo. Acontece que, em cada um destes países, a afirmação das respectivas identidades culturais, como a própria proclamação das respectivas independências, foi feita em português. A língua da opressão colonial transformou-se em língua de libertação nacional. E hoje em língua oficial dos novos Estados africanos, assim com de Timor-Leste. Não por qualquer imposição ou influência neocolonialista, mas por livre escolha de cada um destes novos Estados independentes.
Eu creio que pela mediação da poesia os poetas fundaram os povos. E os povos fundaram a língua. E a língua fundou as nações. Língua de viagem e mestiçagem, como gosta de dizer o meu amigo Manuel Rui. Rio de muitos rios. E talvez pátria de várias pátrias. Sem esquecer que há o português da opressão e o português da libertação. O português de múltiplas tiranias e o português das várias resistências. A língua é a mesma. Mas não é a mesma. É una. Mas é diversa. Tanto mais ela quanto mais diferente. Tanto mais pura quanto mais impura. Tanto mais rica quanto mais mestiça.

E por isso, como diz Eduardo Lourenço, esse apelo à lusofonia só tem verdadeiro sentido e, sobretudo, efeitos práticos, se nos vier de fora. Quer dizer, se for uma palavra do outro, que pode falar um português como nós, mas que não tem a mesma memória cultural e não condivide connosco obrigatoriamente da mesma mitologia, porventura dos mesmos valores. Ele tornou-se um outro até pela recusa, metamorfose, ou nova interpretação da herança cultural que ia outrora, na língua portuguesa.

Não repetirei a frase de Bernardo Soares. Prefiro falar da necessidade de uma estratégia da língua. Para os países que adoptaram o português, devia ser não só uma prioridade cultural mas política. Uma tal estratégia nada tem de suspeito. E aqui me separo do que em tempos afirmou Tabucchi. Assim como a unidade da língua fez a unidade da Brasil, também a difusão da língua oficial é condição de unidade dos novos povos africanos. Não é interesse nosso, é deles. Mas não só por isso é necessária uma estratégia da língua: a globalização existe, assim como a hegemonia cultural, política, linguística e mediática anglo-americana. Nos XI encontros de Petrarca, realizados em 1996 em Montpellier, por France-Culture e Le Monde, manifestou-se o receio de que a diversidade de línguas e de culturas seja enfraquecida por uma uniformidade de homogenização de que os EUA, como potência dominante, seriam os principais beneficiários. A economia única traz a lógica do pensamento único, da cultura única, da língua única. O português é língua de boa prosa e boa poesia. Mas não de economia, nem de computador, nem de supremacia tecnológica, tecnocrática ou mediática. Não é adoptando o inglês como língua dominante que podemos assegurar a personalidade cultural dos nossos povos. Abdicar da língua é abdicar da alma.

Por isso é preciso fazer da língua portuguesa não apenas uma escrita ou uma fala de resistência e sobrevivência, não apenas um meio de comunicação entre nós, mas uma ponte de nós para os outros, um instrumento de comunicação, uma língua de futuro na cena internacional. Ora isto nada tem a ver com lusofonia suspeita. Como retórica neo-sebástica, a lusofonia não tem sentido. Mas já o tem como estratégia de afirmação e libertação perante os novos imperialismos.
Saramago disse há tempos em Madrid que as línguas se cercam umas às outras. E que o português é uma língua ameaçada. Não estou de acordo. Não é só porque o português é a terceira língua da Europa Ocidental mais falada no mundo. Mas porque é uma língua de grande poesia e grande literatura, a língua de Camões e de Pessoa, mas também dos brasileiros Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, dos angolanos Luandino Vieira e Pepetela, das moçambicanos José Craveirinha e Mia Couto, do cabo-verdiano Germano de Almeida. E a língua em que o próprio Saramgo ganhou o Prémio Nobel.

Concordo com Steiner contra Chomsky: Cada língua é um acto de liberdade que permite a sobrevivência do homem. A multiplicidade e a complexidade das línguas é a única riqueza para os povos despojados de tudo o mais. Com cada língua que morre apaga-se a possibilidade ontológica de ser. Cada língua é algo que tem a ver com aquilo a que Blake chamou o "sagrado do particular".

Uma língua e diferentes culturas. É essa a nossa riqueza. Somos diferentes na mesma língua. Uma língua em que as vogais não têm todas a mesma cor. O A de Craveirinha não tem a cor do A de Sophia, o E de João Cabral de Melo Neto não é o de Ramos Rosa, o O dos angolanos Rui Duarte de Carvalho e Manuel Rui não é o Cursino Fortes nem o de Eugénio de Andrade. Não falo sequer da cor das vogais portuguesas a certas horas na Foz de Arelho, que é a minha praia. Direi apenas que nenhuma é branca. E em todas, desde Camões até Camilo Pessanha, há sempre um tom de verde que é o tom do Atlântico. Para já não entrar nas consoantes que, em Portugal, como se sabe, assobiam, na África cantam e no Brasil dançam. Temos um língua com vogais multicolores e consoantes sibilantes, ondeantes e até serpenteantes.

Uma língua onde há um música de fundo comum, o mar. O mar dos nossos encontros, desencontros e reencontros. Mar de uma língua e diferentes culturas. Viagem de nós para nós. Viagem de nós para o mundo.