PAULA de VASCONCELOS: a Criação de Outro(s)

por

Luís Aguilar

Da 10a produção da Companhia de Teatro Pigeons International L'Autre, O Outro, The Other, apenas duas reacções do público são possíveis, determinadas ambas, essencialmente, por fenómenos de transfert e projecção psicológica: ou se gosta muito ou se detesta completamente. Se o esquema de referência sócio-cultural-sensual é de natureza puritana e racio-pragmático-tecnocrática, repudia-se o espectáculo como se ele se dirigisse contra o esquema de referência cultural da tribo alienada pelos valores de uma cultura judaico-cristã. Se, pelo contrário, o esquema de referência é determinado pela libertação do corpo e orientado pelas pulsões sexuais de ordem onírica e inconsciente, adere-se completamente ao espectáculo e por ele se continua o questionamento proposto por Saramago e Paula de Vasconcelos. Situamo-nos neste segundo tipo de gente que gosta de se rever nas fantasias e inquietações existenciais, sem manual de instruções. Paula de Vasconcelos traça para este espectáculo uma fronteira entre o poder e o prazer, entre a solidão e a vida em comum, entre a liberdade e a prisão, entre a cultura e a alienação. Cada espectador fica numa das margens. Felizmente, a maioria na margem de lá. Com vontade de fazer amor com o espectáculo no seu conjunto. Com os seus inventores, actores, encenadora, técnicos, criadores de espaço e adereços, todos esses que nos podem indicar o caminho para o Outro. Que nos desprega do computador e da tecnologia, das várias formas de manipulação psicológica e extorsão afectiva, que nos arrancam da frigidez sexual, da aridez das relações interpessoais, da globalização individualista e selvagem, da influência pavloviana dos media, para reenviar-nos para um espaço de intimidade onde as ondas da moralidade batem nas paredes do teatro porque as suas portas estão fechadas a esses fenómenos- confessa-nos a encenadora.

Mais um enorme sucesso de Paula de Vasconcelos e de Pigeons International, mais uma vez consagrada pela crítica internacional, mais uma vez recebida carinhosa e entusiasticamente pelo público quebequense. Os portugueses continuam a passar ao lado dos espectáculos desta nossa conterrânea, que se tem sabido impor, com êxito assinalável, no dificílimo espaço artístico quebequense. Talvez poucos se tenham apercebido do que, em bom francês, alto e bom som, Paula de Vasconcelos diz para as gentes do seu país de acolhimento: Le Portugal vit actuellement un boum, une période de renaissance économique et culturelle, Le pays est au début de quelque chose d'important, c'est perceptible partout. Je l'ai senti chez ces deux interprètes, qui avaient beaucoup de curiosité, le goût de se lancer, de découvrir. E se o disse, melhor o fez, trazendo de Portugal dois excelentes intérpretes que souberam dar à língua portuguesa uma sonoridade muito especial de ambivalência , de humor, de altivez, de liberdade.

E bonito foi ver a forma como o público quebequense não perdeu pitada do texto e mesmo do seu significado. A mostrar também, neste contexto, como a linguagem é um elemento secundário da experiência. Genial.