|
Nós somos vida das gentes
e morte de nossas vidas;
a tiranos, pacientes,
que a unhas e a dentes
nos tem as almas roídas.
Para que é parouvelar?
Que queira ser pecador
o lavrador;
não tem tempo nem lugar
nem somente d'alimpar
as gotas do seu suor.
Gil Vicente
in
Auto da Barca do Purgatório |
De
Gil Vicente e da complexidade do seu universo
de criação literária,
sabe-se o essencial: é, indiscutivelmente,
o pai do teatro português, comparado
a Aristófanes
ou a Plauto,
cognominado, Shakespeare
imaturo; é, sem dúvida,
o maior dramaturgo da Renascença
na Península Ibérica (os espanhóis
referem, igualmente, Juan
del Encina e Torres
Naharro), cujas 44 obras escritas em
35 anos, a tempo inteiro, 17 em português,
11 em castelhano e 16 bilingues, revelam
grande genialidade, intensidade lírica,
espírito satírico, propensão
para criar
alegorias,
simbologias e teatralização
de linguagens. Menéndez
y Pelayo não tem qualquer dúvida:
Gil Vicente não tem quem o supere
na Europa do seu tempo. O que se
sabe com segurança é que no
dia 8 de Junho de 1502 representou O
Monólogo do Vaqueiro à
rainha
D. Maria, na altura em que dava à
luz o futuro D.
João III, como o próprio
Gil Vicente refere na didascália
do referido auto: que o autor fez ao
parto da muito esclarecida Rainha Dona Maria,
e nascimento do muito alto e excelente Príncipe
Dom João.
De
tudo o resto pouco se sabe de exacto, a
começar pelas datas e locais de nascimento
e morte. Onde nasceu Gil Vicente? Em Guimarães,
Coimbra, Lisboa ou mesmo em Barcelos? Em
Guimarães, diz António
José Saraiva.
Mas Guimarães ou Guimarães
de Tavares ou da Serra (perto de Mangualde)
como defendem estudiosos como José
Coelho, Francisco Torrinha, Augusto Pires
de Lima, Valentim da Silva e Amândio
Marques. Em Guimarães, ponto final,
decreta Salazar. Paramos por aqui. Beirão
como o quer
Valentim da Silva, apoiado no escritor
inglês, Aubrey
Bell, para quem Gil Vicente trazia
a Beira sempre no pensamento. Para
Frei Pedro de Poiares, o Mestre Gil nasceu
em Barcelos. Morreu em Lisboa, dizem uns,
enquanto outros garantem ter sido o Gil
Vicente sepultado em Évora. Para
além de dramaturgo muitos o consideram
ourives e têm a seu favor muitos argumentos
e documentos que sustentam as suas teses.
Desconhece-se,
igualmente, a
sua formação e há
mesmo quem ponha em dúvida o seu
epíteto de renascentista
ou de humanista, como, entre outros,
Carolina
Michaelis de Vasconcelos.
Também
não há a certeza de o escritor
ter feito algum curso universitário.
Teria andado na Universidade de Coimbra
ou fez os seus estudos em Salamanca? Ou
teria sido em Paris? Acreditam alguns que
Gil Vicente era um autodidacta e que não
frequentou quaisquer universidades, facto
que lhe proporcionou condições
de originalidade na sua estrutura artística,
conferindo uma expressão singular,
às suas obras e predispondo-o a representar
de maneira objectiva, os valores culturais
do momento histórico em que viveu.
Ouçamos
o próprio Gil Vicente dizer quem
é, embora numa biografia fantasista
(?) que expõe no Auto
da Lusitânia:
Gil
Vicente o autor
Me fez seu embaixador,
Mas eu tenho na memoria
Que para tam alta historia
Nasceo mui baixo doutor.
Creio
que he da Pederneira
Neto d'um tamborileiro,
Sua mãe era parteira,
E seu pae era albardeiro.
Gil
Vicente testemunhou grandes
mudanças em Portugal, como as
que as viagens de Vasco da Gama e Pedro
Álvares Cabral trouxeram e que delas
e de outras dá conta nos seus autos,
mas também testemunhou a
instauração dos tribunais
da Inquisição, dos quais,
na opinião de muitos, teria sido
vítima, por defender os cristãos-novos.
É
de primordial importância lembrar
que Gil Vicente sempre se manteve fiel aos
reis a que servia e foi um devotado cristão,
empenhando-se na reconstituição
de uma Igreja forte que veiculasse os princípios
católicos. Com efeito, a crítica
que fazia nos seus autos não era
tanto dirigida às instituições,
quanto aos humanos que se desviavam dos
seus princípios. Sobretudo, os nobres
nunca lhe perdoaram as críticas que
lhes infligia, sem dó nem piedade
e, à boa maneira lusitana, recorreram
ao boato para denegri-lo. Com efeito, A
Farsa de Inês Pereira, representada
pela primeira vez ao rei D. João
III, no convento de Tomar em 1523, resulta
de um desafio colocado pelos nobres ao genial
autor que, fartos de serem ridicularizados
nas peças do Mestre Gil, lançaram
o boato que Gil Vicente não valia
nada e que o que escrevia era plagiado de
autores espanhóis. Gil Vicente, sugere-lhes
então que lhe seja dado um tema,
sobre o qual ele escreveria urna nova peça.
O tema apresentado pelos nobres foi o ditado
popular, bastante sugestivo: Mais quero
asno que me carregue que cavalo que me derrube.
É então que o Mestre Gil,
considera, na referida peça que o
asno que me carregue é Pero
Marques, um dos personagens do referido
auto, o marido parvo que, apesar de ser
ridicularizado por Inês, espera-a,
casa-se com ela e sujeita-se aos seus caprichos
e traições e o cavalo
que me derrube, simboliza a atitude
do Escudeiro, preocupado em arranjar uma
boa esposa (leia-se um meio rentável),
finge, dissimula, engana, criando uma imagem
de homem discreto que, depois, se revela
um tirano.
Um
outro problema que se tem colocado é
o das razões que levaram o dramaturgo
a utilizar nos seus autos várias
línguas e linguagens: a par do português,
do castelhano escrevia também em
latim, saiaguês,
italiano e francês. Razões
que tão bem esclarece Salvato
Trigo, numa excelente comunicação
feita em Toronto, no recuado ano de 1983.