Urbano Tavares Rodrigues

(1923)

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Ao atravessar as ruas da Baixa e o Rossio, ainda em obras, quando a poalha desta luz de Maio enevoada doira vagamente as cimalhas e mansardas das velhas casas pombalinas, clareando o ocre do Teatro D. Maria, parece-me ter sonhado a vida que por aqui vivi. Já não me reconheço na criança que às vezes vinha de Moura e atravessava o grande rio, de olhos deslumbrados, entre gaivotas e navios descomunais, e desembarcava no Terreiro do Paço, todo simétrico na sua verde harmonia palaciana. Do alto da sua altivez, o cavaleiro do cavalo negro dominava o mundo e fazia correr mais depressa o sangue nas minhas veias. O táxi entrava na corrente do trânsito, que também me surpreendia, outro tempo ali começava a nascer, e os meus olhos erguiam-se, exorbitados, para o emblema da cidade, talvez a sua alma, aquele arco imenso, com prodigiosas esculturas, umas violentas, tal como eu as retinha, outras majestosas e da brancura dos lugares supremos.
Quando vim morar em Lisboa, já na adolescência, a minha vida decorria sobretudo nas Avenidas Novas e um pouco mais tarde na antiga Faculdade de Letras, Rua da Academia das Ciências. Vinha então à Baixa porque o meu alfaiate (ainda as pessoas comuns faziam os fatos por medida) ficava na Rua de Santa Justa. E, quase sempre que lá ia, passava, como toda a gente (uns mais apressados, outros menos, sinais da roda da fortuna ou do relógio interior de cada um), por aquelas ruas que ainda não me pareciam estreitas, onde o vento por vezes gemia, acompanhando os cegos que tocavam violino e os gritos dos cauteleiros e dos ardinas. Já então a Baixa era um grande centro comercial, onde muitos casais, com os meninos pela mão, vinham aos domingos contemplar as montras. A pequena multidão engrossava às horas de ponta, era por vezes uma autêntica enxurrada de corpos alheios e agressivos, empurrando-se, arfando, tossindo, e onde às vezes se cruzavam dois olhares subitamente acesos em desejo ou compreensão, fadados quiçá para se entenderem por todo o sempre, e que logo se perdiam um do outro, como sucede no giro incessante das grandes cidades.
Continuo a gostar muito da Baixa, do seu estridor, do jardim de saibro que o Rossio já foi, com as suas fontes e estátuas, o falso D. Pedro vestido agora de tapumes. Mesmo cheia de pó, de aterros e buracos traiçoeiros, acidentes transitórios, volto sempre à Baixa dos tocadores de concertina nas escadinhas de Santa Justa, dos turistas coloridos, de binóculo e máquina fotográfica a tiracolo, olhos voltados para cima, acompanhando a pesada gaiola do ascensor. Apesar da falta de pintura dos prédios, do certo abandono de quarteirões inteiros dessa cidade baixa delicadamente setecentista, a sua fauna humana, renovada, persiste: lá vão as melancólicas costureiras de alfaiate, muitas das quais perderam o emprego, o cantor da voz triste, que comovia algum melómano perdido na onda de gente apressada. Eis os cães dos drogados cheirando a hache e a suor curtido; e os mesmos barbeiros, agora cabeleireiros, de bata azul e com o "Record" na mão, espreitando, à porta, o cliente da hora certa; e a insolência dos "klaxons", a empurrarem furiosamente a condutora da frente; o povo a correr para os bancos.
Morava numa trapeira da Rua da Madalena uma das namoradas dos meus 17 anos. Não a primeira, que essa era italiana, estudante e sardenta, e ensinou-me, num ardente Agosto do Estoril, entre mar e casino, quase todos os segredos e requintes do amor fora de regras. A Conceição, corista do Parque Mayer, que chegou logo a seguir à minha educação erótica, era paradoxalmente menos libertina e muito mais romântica. Linda de pasmar, parecia, ora uma "starlet", ora virgem de altar, até pelos azuis vaporosos que vestia. Havia um ou mais sujeitos ricos que a sustentavam (com o que ela ganhava, coitada, não tinha outro recurso), e atrevia-me eu a ter ciúmes, tão pouco sabia das crueldades daquela vida. Um dos banqueiros podia passar por galã maduro, mas só sabia comprar, comprar, até o prazer, que eu colhia de todas as partes do corpo dela, sem saber sequer como a cativara, se por sedução quase inconsciente ou por a fazer rir dos meus despropósitos. Quando ela saía da segunda sessão da revista, já muito tarde, ainda íamos às vezes dançar ao Bar do Cristal, ou então arrastava-me até ao Cais das Colunas, de mão dada, para vermos a noite ainda a arder de estrelas, que caíam no Tejo, e só depois fazíamos amor longamente na trapeira onde ela morava, e as suas lágrimas, no fim da nossa festa e das suas confissões, eram cristais desmaiados que me cortavam a voz.
Adorava roupas à moda, que eu não podia dar-lhe, corria às vezes os olhos aguados pelas montras luxuosas da Rua Augusta, a puxar por mim, se me acontecia passear com ela, de tarde. E íamos beber chocolate à Central da Baixa. Nessa pastelaria calma e elegante, muitos anos depois, sendo eu já redactor do "Diário de Lisboa", acabara de comprar em segunda mão uma arrastadeira de 11 cavalos, creio que foi no ano da Revolta da Sé, acontecia-me não raro ali conspirar e almoçar um bife raspado, à alemã, ou dois pães de leite com fiambre e manteiga e um "indiano" recheado com café.
A Baixa era para mim ponto de encontro com outros oposicionistas, que ali tinham escritório, como o Mário Soares, na Rua do Ouro, ou o Abranches Ferrão, que editou, pelo jornal de Foro, a minha novela "Uma Noite e Nunca", apreendida pela Censura, e que tinha banca na Rua do Crucifixo, com o Luiz Francisco Rebello, o Duarte Vidal e, mais tarde, o José Carlos de Vasconcelos, se a memória não me atraiçoa. É a altura do "Programa para a Democratização da República", que a todos nos levou à PIDE, ao Aljube ou a Caxias, e que a muitos valeu longos meses de encarceramento.

 

 

 


Na Rua de Santa Justa e mais tarde na Rua da Vitória, cortou-me o cabelo durante algumas décadas um alentejano simpático, de bigodinho aventureiro, o Sebastião Carrajola de Figueiredo, ex-menino do coro em Portalegre, cheio de lábia e assanhado defensor do 25 do Quatro, como ele dizia, que ali mesmo combatia a reacção, dentro dos limites que o ofício lhe consentia, e chegou a ter a subida honra (sic) de barbear e pentear o seu camarada Salgado Zenha, cuja candidatura à Presidência da República veio mais tarde a subscrever - e disso muito se orgulhava.
Foi na Rua do Ouro, junto ao elevador de Santa Justa, que numa tarde histórica apanhei um dos panfletos de denúncia do fascismo que o Palma Inácio, ao volante de um avião militar roubado, ou melhor, apreendido em nome da liberdade, lançava sobre Lisboa, numa nuvem branca, cintilante de esperança. Pouco depois do paquete "Santa Maria" ser transformado, por um comando revolucionário, em "Santa Liberdade".
Outra visão: a da Rua do Arsenal, memória viva, inapagável, dos operários da Resistência, como o Bento Gonçalves. E nessa mesma rua, o enxame de lojas e lojinhas de todas as coisas e todos os sonhos, pintado por Cesário Verde, nas "Ave Marias".

Foi o José Cardoso Pires quem me chamou a atenção para as lojas de aparelhos ortopédicos que se seguem umas às outras na Rua dos Fanqueiros, anos antes de descrever admiravelmente essa estranha paisagem urbana em "A Balada da Praia dos Cães".
Por falar em escritores, quero lembrar a Baixa de José Gomes Ferreira e de Armindo Rodrigues, companheiros de deambulações líricas pela noite de Lisboa, que o segundo fixou nas suas "Dez Odes ao Tejo", enquanto o autor do "Poeta Militante" nos fala não só do rio como do Largo de São Domingos e das putas tristes dessa área, fantasmas de um vazio de Julho.
Desapareceram muitos dos cafés do Rossio, onde o surrealismo abancou, sobretudo no Gelo, entre eles o Chave d' Ouro, onde Humberto Delgado deu a célebre conferência de Imprensa, em que estrondeou o "Obviamente demito-o", que tanto afrontou o orgulho de Salazar. Do Chave d'Ouro tenho também na lembrança o David Mourão-Ferreira, supremo encantador da palavra, lendo versos numa tertúlia lá em cima, e o Abelaira escrevendo numa absorta mesa, perto da porta, entre muitas chávenas de café e filosofia viva.
Os mirones do Rossio, que metralhavam as mulheres sós com o olhar concupiscente e lhes segredavam galanteios dos mais obscenos, encandeados pela "seminudez" das refugiadas estrangeiras durante a guerra de 39-45, tiveram o seu apogeu machista nos finais dos anos 60, aquando do primeiro surto das mini-saias e dos "hot-pants", uns shorts muito curtos, género calção de banho em tecido leve.

  O espaço do ascensor de Santa Justa, agora que sigo vasculhando na memória, foi teatro de muitos momentos da minha vida. No restaurante A Quinta, pendurado sobre a Baixa, mesmo ao lado do elevador, jantámos com o Curt Mayer Clason vários escritores na berra desses mesmos anos 60, entre eles o Cardoso Pires e o Abelaira; e do mirante que fica ao lado mostrei de outra vez a dois grandes poetas, o Murilo Mendes e o Jaime Salinas, o soberbo panorama do Castelo e da Sé, que encimam esse tão especial casario ocre, castiço e lírico, o dos quadros de Carlos Botelho, que vai descendo de Santa Luzia até às gruas dos cais e aos mastros do rio enfadado de sol.
Cá em baixo, junto à base do elevador, à porta do então Salão Império, em 1970 (ou 197l?), estive longos minutos, nervoso, com metade de uma folha do "Borda d'Água", mal cortada, fechada na minha mão, à espera da pessoa, para mim desconhecida, que me traria a outra metade da mesma folha, para um importante encontro clandestino. Era uma rapariga magra, que me pareceu disfarçar o nervosismo com um sorriso. Hoje que tanta gente, velha e nova, vive a farejar o dinheiro, em todos os cantos da cidade e da vida, e a comprar luxos inúteis quase por obrigação, ainda me aquece aquele aperto de mãos, que se davam uma e outra à luta pela liberdade, sonhando um país que (ainda) não existe.
Do calor branco do Verão vinham as flores baratas que comprávamos, à esquina das escadinhas de Santa Justa, para a alegria da namorada ou da parceira de uma noite bonita e casual. Viver à espera da PIDE, com projectos incertos, dava direito a beber de vez em quando a espuma de uma hora louca.
Pelas ruas da Baixa, num 1º de Maio proibido em que a polícia nos dispersou a tiro e com indelével água azul, houve correrias dementes pela Rua do Ouro, trabalhadores e estudantes espancados, o Manuel Vilaverde Cabral ficou, se bem me lembro, todo pintado da cor do céu, e eu por lá andei e escapei dessa vez aos encontrões e às cacetadas.
Relendo os contos que então escrevi, verifico que nalguns reproduzi (e obviamente alterei, acrescentei ou reduzi) os factos reais; noutros, pelo contrário, antecipei, como se adivinho fosse, a vida que ia viver.