Marie-Chantal l'Écuyer-Coelho
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Uma Fotografia de Ophélia Queiroz

Uma Fotografia de Ophélia Queiroz

É uma velha fotografia, cor de sépia, com os ângulos amachucados. Sobre a imagem aparece cinco vezes a Ophélia. No centro da fotografia, a Ophélia vira as costas ao espectador : uma sombra no primeiro plano, vaporosa, com um reflexo intenso de luz em cima do cabelo. Aos lados, as outras quatro Ophélias. Formam, em conjunto, um círculo. Sorriem amigavelmente e trocam olhares cúmplices. Somente a Ophélia do lado direito está isolada: uma grande dobra no papel fotográfico dissimula-nos o seu rosto de perfil, e separa-a do resto do grupo. Essa imagem é a representação de um colóquio íntimo: uma menina frente a frente com os seus reflexos. O título: "Ophélia ao espelho".

Lembro-me agora de um soneto de Florbela Espanca : "Quem sou? Um fogo fátuo, uma miragem …/ Sou um reflexo ,,, um canto de paisagem/ Ou apenas cenário! Um vaivém" ("Minha culpa", Charneca em Flor). Lembro-me também de um fado muito misterioso, interpretado por Amália Rodrigues: "Por trás do espelho quem está/ De olhos fixados nos meus?/ Alguém que passou por cá/ E seguiu ao Deus-dará/ Deixando os olhos nos meus./ Quem dorme na minha cama/ E tenta sonhar meus sonhos?/ Alguém morreu nesta cama/ E lá de longe me chama/ Misturado nos meus sonhos" (Luís de Macedo, 'Cansaço'). E finalmente recordo-me dessa frase de Bernardo Soares, tão simple mas tão representativa da sua estética "especular' : "Somos dois abismos frente a frente, um poço contemplando o céu" (Nous sommes deux abîmes face à face - Un puits contemplant le ciel", Le livre de l'intranquillité).

A fotografia da Ophélia é, de muitas pontos de vista, um emblema para o interseccionismo pesoano ou para o cubismo do início do Século XX (penso, por exemplo, a esse retrato celebérrissimo de Fernando Pessoa por Almeida Negreiro, onde o poeta está representado como um ser anguloso e introvertido, pendido em cima da superfície polida da sua mesa de trabalho e de uma folha de papel, num quarto onde as coisas estão sobrepostas de uma maneira artificial, instável, por assim dizer, cubista) ; mas, sobretudo, acho que essa fotografia é um emblema para o solipsismo do lirismo português pós-romântico - para o seu carácter intransitivo. O outro, nessa imagem, está completamente evacuado pela figura do círculo. A Ophélia é completamente autosuficiente, uma unidade repleta que contemplamos do exterior.

A possibilidade de um qualquer acesso ao outro ou ao mundo exterior foi já uma questão no fulcro da poesia subjectiva e pessimista - o transcendentalismo doloroso - de Antero de Quental. Mais tarde, Mário de Sá-Carneiro, num poema intitulado "Dispersão", descrevia-se também como um labirinto : um espaço sincopado, feito de meandros et de paredes que impedem a comunicação e fecham o sujeito sempre nas mesmas coisas. Fernando Pessoa, pela sua parte, escrevia no "Fausto" : "sou sempre o mesmo, sempre o mesmo, sempre". Nos seus poemas interseccionistas (por exemplo, "A Chuva Oblíqua"), a interioridade do sujeito e a realidade do mundo são exprimidos como dois planos distintos que se cortam de uma maneira comparável a uma colagem. No Livro do Desassosego, essa estratégia torna-se no hábito de Bernardo Soares, de deslizar inopinadamente da introspecção à descrição de paisagems urbanas, consagrando assim o esquartejamento da sensibilidade e do pensamento: "Lorsque je veux descendre au fond de mon âme, je m'arrête bientôt, l'esprit ailleurs, au début de la spirale que décrit le profond escalier, et regardant, par la fenêtre du dernier étage, le soleil dont l'adieu mouille de teintes fauves l'entassement confus des toits". O desejo de exprimir uma outra coisa que o seu aborrecimento e a sua saudade está contrariado pelas limitaçãos inerentes à nossa condição de indivíduos.

A Ophélia era, com certeza, a encarnação da bem-amada - e portanto, de um possível contacto com o outro - na obra pessoana. Mas essa relação era uma espécie particular de amor : um amor feito de futilidades, de ironia e de abstinência que culminou numa ruptura, anunciada por uma carta muito lacónica que consagraria o isolamento do poeta : "Ma vie tourne autour de mon œuvre littéraire - qu'elle soit bonne ou mauvaise. Tout le reste dans la vie n'a qu'un intérêt secondaire … Voilà, et par hasard c'est la vérité. Au revoir petite Ophélia. Dormez et mangez, et ne perdez pas de poids" . O narcisismo pessoano exigia esta conclusão: "Nous n'aimons jamais vraiment quelqu'un. Nous aimons l'idée que nous nous forgeons de ce quelqu'un. Ce que nous aimons, c'est un concept forgé par nous - et en fin de compte, c'est nous-mêmes. Cela est vrai à tous les degrés de l'amour. Dans l'amour sexuel, nous cherchons notre propre plaisir par l'intermédiaire d'une idée créée par nous-mêmes . L'onaniste est abject, mais en toute rigueur, il est l'expression parfaite de la logique amoureuse". O microcosmo da Ophélia é então uma forma de sublimação do narcisismo implicado na produção das artes em geral, e, mais particularmente, na poesia de Fernando Pessoa ; mas também é um exercício da subjectividade, um jogo que nos abana entre o sentimento que o sujeito feminino foi objectivado para nós e a vaga impressão que nós somos somente estrangeiros, e que a nossa presença é o que, de facto, perturba a integridade da Ophélia. A deictica (em francês : la déictique) da imagem - uma estética do espelho - suspende-nos numa posição ambivalente, entre o ser e o não ser.