Uma Flor Trasladada ou

o Planeta Identitário


Por
Sandy Gonçalves

Nunca emigrei, mas sou emigrante. Nunca imigrei, mas também não tenho a certeza absoluta de onde parti e aonde cheguei. Sou errante, errante na essência da minha identidade. Vagueio por entre os meus antepassados. Venho semeando raízes ao longo dos anos. Mas, em vez de me encastrar na terra, instintivamente, vou rolando como uma bola de neve, cujo movimento cíclico me obriga a sobrepor camadas. E, assim, ganho uma forma, forjo uma especificidade, acentuo, simultaneamente, as diferenças e similitudes que carrego comigo.

Cinquenta anos depois do Satúrnia ter atracado na terra já pisada pelos irmãos Corte Real, falta ainda saber, realmente, se este nosso fado luso-canadiano não havia sido já anunciado pelos feitos históricos dos nossos ascendentes. Há séculos atrás, a bordo das caravelas, a perseverança dos navegadores portugueses levou-os a percorrer os mares, à descoberta de novos mundos para dá-los ao Mundo. Mas, nas últimas décadas, esses mundos que já não são novos para ninguém, voltaram a ser redescobertos, desta vez, pelos viajantes do século XX que, pelos vistos, vieram para ficar… À procura de um amanhã mais risonho, muitas foram as famílias que arriscaram o seu futuro, apostando no desconhecido e no longínquo para recomeçar as suas vidas. À sua espera estava uma extensa superfície, dividida linguisticamente por anglófonos e francófonos que, todavia, continuavam à procura de uma identidade.

Precisava-se então de reforços para construir as barragens e os caminhos-de-ferro, para trabalhar nas minas, para erguer um país que ainda não era o que hoje é... A falta de mão de obra no Canadá, foi um pretexto positivo para os dois povos (luso e canadiano) se darem as mãos e comungarem, perante o mosaico multicultural que se estava a formar e a definir aos poucos. Também, Italianos e Irlandeses, por exemplo, conheceram um percurso migratório semelhante, tendo sempre como ponto de partida uma situação precária e a ilusão de uma vida melhor. Mas estes últimos já celebraram as suas "Bodas de Ouro" há muito mais tempo, e com o decorrer das décadas, o peso das suas raízes culturais foram-se diluindo, entranhando-se, pouco a pouco, no solo da terra de acolhimento. Hoje em dia, ainda se celebra o santo popular de origem celta, Saint-Patrick, mas pouco mais se consegue distinguir da cultura irlandesa na sociedade canadiana actual. Os nomes de família, por exemplo, foram completamente transpostos e integrados na língua inglesa, como é o caso dos McKay, dos McTavish, para apenas mencionar alguns... Fechando agora este parênteses sobre os Irlandeses, interrogo-me se não será esse o futuro que aguarda os nossos Silvas, Gomes, Rodrigues, Ferreiras, Santos, Pereiras, Oliveiras, etc. daqui a mais umas décadas?!

Entretanto, neste período transitório, em que não somos completamente nem portugueses nem canadianos e, no nosso caso, nem quebequenses- sentimo-nos como uma flor plantada no jardim errado, confrontada, deste modo, com três famílias distintas. As três querem adoptar-me mas, infelizmente, nem a francofonia, nem a anglofonia nem mesmo a lusofonia me conseguem convencer plenamente porque, sendo parte integrante de todas elas, acabo, afinal, por não pertencer a nenhuma.

O que, afinal, eu sou é um girassol que procura a luz para se alimentar. À custa de reviravoltas frequentes e graças aos raios de sol oriundos de horizontes muito diferentes. Neste jardim fictício, estou rodeada de tulipas amarelas, de cravos vermelhos, e muitas outras flores cuja textura colorida faz um belo ramo. Mas, na realidade, estas flores estão desprovidas de raízes sãs e homogéneas, pois a trasladação obrigou o contacto com resíduos de jardins distintos que, por esse motivo, sou também abelha, que colhe o seu alimento em fontes alheias, para, finalmente, produzir o seu próprio produto.

Cinquenta anos depois da abertura das portas da emigração portuguesa para o Canadá, escreveu-se mais um fascículo da história de dois países separados geograficamente por um oceano. Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar, dizia Virgílio Ferreira. No que a mim me toca, as línguas têm todas uma vista para o mar e é esse cruzar de olhares, por entre ângulos sobrepostos, que me permitem ter uma visão introspectiva do significado da palavra hifenizada, luso-canadiana. O Satúrnia não voou pela esfera celeste da Via Láctea, mas navegou até ao porto de Halifax onde, pela transmutação de várias gerações, conseguiu criar um novo planeta identitário que gira em torno do Sol, habitado pelos luso-descendentes.